Dead Can Dance, "Black Sun", in https://www.youtube.com/watch?v=9DeGs61ku-4
O rapaz construiu um imaginário refém de
superstições e da cabalística. Havia os azares comuns que evitava, porque lhos
ensinaram como azares que podem azarar um destino (os gatos pretos no caminho,
os espelhos partidos, as escadas abertas sob as quais o corpo não passava, as
tesouras cruzadas, o treze, e o resto que o povo ensina como azares a evitar).
O resto foi por sua conta.
Tudo começou num réveillon. Ouviu os mais velhos a berrarem para que as entradas no
ano neófito fossem feitas com o pé direito assente no chão, deixando o esquerdo
no ar. “É para entrar com o pé direito”,
advertiam, entre vapores etílicos, os mais viciados na primeira superstição que
o entendimento captou. Daí para a frente, em tudo o que fosse importante, o pé
direito ia à frente do pé esquerdo. Era assim ao pôr os pés no chão depois da
alvorada, a calçar as peúgas e os sapatos, a sair de casa, o primeiro pé a
sentir o chão da rua, a entrar na escola, ou na sala de aula, ou num
restaurante, ou no pavilhão, ou no cinema – ou onde quer que fosse, o pé
direito diligentemente precedendo o esquerdo.
Nem se apoquentava que um canto escondido
da consciência interrogasse, de vez em quando, se o pé esquerdo não ficava
diminuído com tanta parcimónia supersticiosa. Nem sequer tratou de apurar se a
mania de dar guarida ao pé direito tinha explicação racional. Talvez estivesse
a precisar de um grande azar para desconstruir o imaginário sedimentado no
eflúvio de uma superstição, recusando-se a admitir que as superstições, como
superstições que o são, pertencem ao irracional. Para sua sorte, havia partes
do corpo que não se dividiam em dois hemisférios. Uma vez, dera consigo a
pensar o que seria da vida se essas partes do corpo também tivessem um par e um
ímpar.
O ímpar quadrava com o pé esquerdo – o pé
desgraçado, o cavalheiro que cedia sempre a passagem ao feminil pé direito. Às
custas de tão pueril superstição, que foi atravessando as idades todas, o rapaz
simpatizava com a direita radical. Detestava, politicamente falando, tudo o que
soasse a esquerda. “Assim como assim, a
prioridade no trânsito é dada a quem vem da direita. As coisas não são por
acaso”, murmurava para dentro, no convencimento enesgado da constelação de
superstições em que medrava.
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