7.1.15

O meu pé esquerdo

Dead Can Dance, "Black Sun", in https://www.youtube.com/watch?v=9DeGs61ku-4
O rapaz construiu um imaginário refém de superstições e da cabalística. Havia os azares comuns que evitava, porque lhos ensinaram como azares que podem azarar um destino (os gatos pretos no caminho, os espelhos partidos, as escadas abertas sob as quais o corpo não passava, as tesouras cruzadas, o treze, e o resto que o povo ensina como azares a evitar). O resto foi por sua conta.
Tudo começou num réveillon. Ouviu os mais velhos a berrarem para que as entradas no ano neófito fossem feitas com o pé direito assente no chão, deixando o esquerdo no ar. “É para entrar com o pé direito”, advertiam, entre vapores etílicos, os mais viciados na primeira superstição que o entendimento captou. Daí para a frente, em tudo o que fosse importante, o pé direito ia à frente do pé esquerdo. Era assim ao pôr os pés no chão depois da alvorada, a calçar as peúgas e os sapatos, a sair de casa, o primeiro pé a sentir o chão da rua, a entrar na escola, ou na sala de aula, ou num restaurante, ou no pavilhão, ou no cinema – ou onde quer que fosse, o pé direito diligentemente precedendo o esquerdo.
Nem se apoquentava que um canto escondido da consciência interrogasse, de vez em quando, se o pé esquerdo não ficava diminuído com tanta parcimónia supersticiosa. Nem sequer tratou de apurar se a mania de dar guarida ao pé direito tinha explicação racional. Talvez estivesse a precisar de um grande azar para desconstruir o imaginário sedimentado no eflúvio de uma superstição, recusando-se a admitir que as superstições, como superstições que o são, pertencem ao irracional. Para sua sorte, havia partes do corpo que não se dividiam em dois hemisférios. Uma vez, dera consigo a pensar o que seria da vida se essas partes do corpo também tivessem um par e um ímpar.
O ímpar quadrava com o pé esquerdo – o pé desgraçado, o cavalheiro que cedia sempre a passagem ao feminil pé direito. Às custas de tão pueril superstição, que foi atravessando as idades todas, o rapaz simpatizava com a direita radical. Detestava, politicamente falando, tudo o que soasse a esquerda. “Assim como assim, a prioridade no trânsito é dada a quem vem da direita. As coisas não são por acaso”, murmurava para dentro, no convencimento enesgado da constelação de superstições em que medrava.

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