27.1.15

Sangue frio

Bizarra Locomotiva, “Cada Homem”, in https://www.youtube.com/watch?v=3YAOypXDtLg    
A jugular ferve. As ondas enfurecem-se contra o cais onde a lucidez quer regaço, mas não consegue. Os olhos irradiam efervescências encarnadas, parece que querem saltar das órbitas. A pele, de tão febril, dir-se-ia pronta para frigir alimentos. Pelo corpo fora, um contínuo abalo telúrico; parece que o chão se quer dissolver debaixo dos pés, e um precipício voraz engolir o corpo no seu vazio.
Os elementos aparecem em contumaz conspiração contra tudo. E tudo aparece na ponta de uma baioneta, que com a incandescência dos elementos não demora a bolçar suas balas. O punhal pendente, o punhal que espera pela primeira oportunidade para se emancipar do cordel que o ata, abeira-se dos limites. Por baixo, o rio caudaloso transporta nutrientes iracundos. Chega ao mar e contamina a (já) maré viva com fúria enlameada. Que ninguém se chegue às margens daquele rio, ou ao areal onde o mar se esmaga. Tudo se congemina para a adulteração da alma. Tudo se compõe para o destravar da fala, num troar que acompanha a ventania medonha.
Mas tudo encontra um contrapeso. De que adiantam as febres impuras, os olhares que incomodam, as palavras que incendiam estados de alma, ou as águas tumultuosas que deitam mais ira para a ira que já se transporta em seu leito? Só resolvem a falta de lucidez, que de tão ausente traz consigo ainda mais omissa lucidez. É uma forma de loucura que se abeira do precipício por onde o corpo arremete, carrega em si um íman em direção do precipício. Os sobressaltos desarranjam a alma, são moléculas contaminadas a tomar de assalto as partes nobres da alma.  
Eis que uma garça desenreda as inquietações. No céu, desenha uma coreografia prodigiosa. Os olhos ocupam-se com o céu tomado pela fantasia da ave, que parece dissipar os olhos embaciados com pétalas perfumadas que sobressaem das asas. Das asas que sussurram um segredo: que se meta o sangue fervente em seu refrigério imperativo. Os olhos que se fechem ao que não importa, ou os ouvidos que se encerrem num mutismo, que as importunações todas sejam desfeitas em mero pó e, como pó em que sobejam, destravem a brandura de tudo em redor. Até que sobrem as cores engalanadas do tempo, as palavras sejam todas ungidas com açúcar e a pele esteja embebida no perfume derramado pelas asas da garça.
O sangue, por fim, domado. E já não a torrente selvagem que galga os intrépidos contrafortes que se amontoam no caudal do rio. O punhal só encontrou sangue frio. 

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