5.1.15

Vira lata

Anne Clark, "As Soon as I Get Home" (live), in https://www.youtube.com/watch?v=tIUPLHs8Wug
Dele diziam ser sem-abrigo. Porque eram andrajos que trazia em cima do corpo. Por causa da falta de higiene. Porque não queria um teto que o abrigasse do medo da noite ou do frio do inverno. Por se alimentar quando calhava, umas vezes na sopa dos pobres que a generosidade dos outros distribuía na noite funda, outras vezes na mendicidade a que se entregava. Porque queria viver imerso na profunda solidão que decidira para seu exílio.
Incomodava-se quando dele se dizia ser sem-abrigo. Subia às paredes, em sinal de fúria, quando a comiseração dos outros lhe pespegava a condição de mendigo. Pois toda a sua condição era um retiro da vontade. Fora ele que quisera estar fora da convivência social. Fora ele que se refugiara do contacto com os semelhantes. Fora ele que decidira perder a casa. E a família. E rendimentos certos, e um certo conforto burguês que vinha dos pergaminhos familiares, da roda de amigos, da vivência do trabalho. Podiam alguns adivinhar que era uma forma de peregrinação forçada. Outros diriam, num porventura acesso pragmático, que era pura demência. Não lhe importava o diagnóstico dos outros, nem os seus pesares, ou as preces que familiares mais próximos continuavam a fazer, convencidos que estava desaparecido.
Por meses fora, não conversou com ninguém. Não disse uma só palavra. Os andrajos imundos e gastos eram substituídos por outros andrajos, menos imundos e gastos, extraídos ao lixo esquadrinhado. A barba tornara-se farta e hirsuta. Os cabelos eram um entrelaçado inexpugnável, o corpo o sacrário de um fétido lugar, o calçado rombo feria os dedos dos pés. Ao contrário do que julgavam os que inventariavam os mendigos da cidade, não estava hipotecado pela loucura. Mantinha um registo diário em cadernos artesanais. Era como se estivesse a falar com a profundidade da alma, em contínuo diálogo. Era como se precisasse de se lavar por dentro, numa diurese intensa que depôs décadas do que se acostumara a ser.
Uma vez, ao cabo deste tempo todo, falou. Foi entrevistado por uma equipa de peritos que estavam em “trabalho de campo”. Perguntaram pelas origens da solidão, pelos sentimentos possuídos na peregrinação ociosa, o que achava do tempo vindouro. A todas as perguntas respondeu com patranhas. Menos a uma. Perguntaram se tinha saudades de casa. Retorquiu que a casa dele era esta – o céu, ora estrelado ora enxameado de nuvens, que contemplava antes de se entregar ao sono. E que não havia casa maior que pudesse ser pertença de uma pessoa.

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