Anne Clark, "As Soon as I Get Home" (live), in https://www.youtube.com/watch?v=tIUPLHs8Wug
Dele diziam ser sem-abrigo. Porque eram
andrajos que trazia em cima do corpo. Por causa da falta de higiene. Porque não
queria um teto que o abrigasse do medo da noite ou do frio do inverno. Por se
alimentar quando calhava, umas vezes na sopa dos pobres que a generosidade dos
outros distribuía na noite funda, outras vezes na mendicidade a que se
entregava. Porque queria viver imerso na profunda solidão que decidira para seu
exílio.
Incomodava-se quando dele se dizia ser
sem-abrigo. Subia às paredes, em sinal de fúria, quando a comiseração dos
outros lhe pespegava a condição de mendigo. Pois toda a sua condição era um
retiro da vontade. Fora ele que quisera estar fora da convivência social. Fora
ele que se refugiara do contacto com os semelhantes. Fora ele que decidira
perder a casa. E a família. E rendimentos certos, e um certo conforto burguês
que vinha dos pergaminhos familiares, da roda de amigos, da vivência do
trabalho. Podiam alguns adivinhar que era uma forma de peregrinação forçada.
Outros diriam, num porventura acesso pragmático, que era pura demência. Não lhe
importava o diagnóstico dos outros, nem os seus pesares, ou as preces que
familiares mais próximos continuavam a fazer, convencidos que estava
desaparecido.
Por meses fora, não conversou com
ninguém. Não disse uma só palavra. Os andrajos imundos e gastos eram
substituídos por outros andrajos, menos imundos e gastos, extraídos ao lixo
esquadrinhado. A barba tornara-se farta e hirsuta. Os cabelos eram um
entrelaçado inexpugnável, o corpo o sacrário de um fétido lugar, o calçado
rombo feria os dedos dos pés. Ao contrário do que julgavam os que inventariavam
os mendigos da cidade, não estava hipotecado pela loucura. Mantinha um registo
diário em cadernos artesanais. Era como se estivesse a falar com a profundidade
da alma, em contínuo diálogo. Era como se precisasse de se lavar por dentro,
numa diurese intensa que depôs décadas do que se acostumara a ser.
Uma vez, ao cabo deste tempo todo, falou.
Foi entrevistado por uma equipa de peritos que estavam em “trabalho de campo”.
Perguntaram pelas origens da solidão, pelos sentimentos possuídos na
peregrinação ociosa, o que achava do tempo vindouro. A todas as perguntas
respondeu com patranhas. Menos a uma. Perguntaram se tinha saudades de casa.
Retorquiu que a casa dele era esta – o céu, ora estrelado ora enxameado de
nuvens, que contemplava antes de se entregar ao sono. E que não havia casa
maior que pudesse ser pertença de uma pessoa.
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