16.1.15

Realejo (ou: uma família feliz?)

Dead Combo, "O Assobio", in https://www.youtube.com/watch?v=7bXDTHXukUA
Numa rua movimentada e comercial da cidade, uma família inteira a pedinchar. O pai agarrado ao realejo, dando corda à manivela de onde sopra a melodia que traz o imaginário até Paris. A mulher canta, com a voz doce de rouxinol, estrofes entoadas em francês. A descendência ensaia uma coreografia que tem tanto de desajeitada como de encantadora (atendendo à ingenuidade das crianças, engodo para a esmola).
Vestem como hippies. Os cabelos compridos, ensarilhando-se na aparente falta de água. O homem do realejo é o mais velho – bem mais velho que a consorte, ainda uma mulher jovem. As duas filhas têm idades próximas, idade de escola primária. Terão vindo de rajada, uma atrás da outra. Um chapéu masculino jaz no chão à frente do terreiro onde as petizes encenam as não ensaiadas coreografias. Os turistas, quase em tanto número como os nativos (a cidade ganhou foros de respeitabilidade turística), são mais pródigos no donativo. Por cada dez turistas que deixam esmola, só uma alma caridosa indígena deposita prova da comiseração em forma de numerário metálico.
A família não se despega de rostos sorridentes. O riso da mulher canora é contagiante. O sorriso desembaraçado enfeita a cantoria, dá-lhe outra vivacidade. O homem do realejo age como chefe de família. Dá o tom, termina uma música e ordena, ao manobrar o instrumento, o começo de outra, acenando com a cabeça as ordens que elas respeitam. Do sorriso sem reticências dir-se-ia ser uma irradiação de espontânea felicidade. De desprendimento dos valores materiais que são a descompensação da humanidade no seu traje moderno. De como as gentes se deviam contentar com uma forma de vida espartana, dando razão a Agostinho da Silva quando filosofou sobre a indignidade (ou a inumanidade) do trabalho.
Mas ali só não há trabalho formal. A função musical tem uma paga, na forma da bondade que os que passam aceitam desembolsar. O lirismo fica bem nos livros que romanceiam idealismos. O resto, é um ribombar que vem atrás das ideias que cinzelam formas de vida. A ingenuidade quadra com alguns desses idealismos (e com o oportunista casamento que convém a gente com certa formatação ideológica). A quem está empenhado à normalidade que uma qualquer teoria da conspiração diria ser sua algoz, impressiona o desprendimento dos valores materiais, as roupas datadas, a função circense; como impressiona a falta de higiene, o nomadismo e a errância, a incógnita sobre como aprendem (sem escola) aquelas crianças.
A felicidade não vem apenas estampada nos sorrisos de ocasião.

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