Brendan Perry, "Song to the Siren" (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=g4en3W5U1yo
Somos reféns da maior miopia que nos
consome: a indiferença. Os outros passam por não interessar para as contas de
cada um. Apenas conta quem se ensimesma e os outros são alienígenas a quem se
dedica a irrelevância. Destruímos o cimento da pertença. Somos fautores de um suicídio
coletivo, uma autofagia que não adivinha ventos a favor para o amanhã da
espécie. Em cada pessoa há um vasto oceano que não é visitado por navio nenhum.
Os outros navios são logo escorraçados pela indiferença letal. Cada nau
confina-se ao mar que é sua pertença. Não estima aventurar-se noutros mares. E
todos os mares ficam desertos, pois o navio que é sua pertença é nativo, não
conta para estas contas. Enquanto formos tributários da indiferença do outro,
enquanto não deitarmos um olho ao mendigo que clama pela comiseração de quem
passa, enquanto não ficarmos ultrajados quando alguém morre de morte
gratuitamente violenta às mãos de outro, enquanto taparmos com o pé as
perplexidades dos outros que talvez carecessem de alvitre nosso, enquanto
houver disto e de outro tanto mais, somos apenas um espectro de gente. A caminho
de um gigantesco precipício.
★
Dizem os enamorados da moral pública
(objetivada pela batuta que usam) que a indiferença é arma de destruição maciça
(da espécie). Que devemos deitar os olhos aos problemas dos outros. Que o mar
não merece ser uma vastidão inabitada. Mas ninguém lhes diz para não serem
ardilosos no encantamento de quem lhes dá ouvidos. Somos mesmo ilhas. Não
deixamos de ser ilhas nem quando temos (ou está convencionado) de lidar com
outros. Não se vira o espírito para dentro do corpo. Admite-se o ADN
irrepetível. Quando sobressaltos inquietam alguém, não devem os desocupados de
outras empreitadas propagandear uma gelatinosa atenção como se fossem
curandeiros de todos os males que gravitam fora de si. Mal fora: se mal
conseguem amanhar os males que os corroem por dentro, como se podem atirar para
o pedestal onde se empoleiram gurus que sossegam mortificações dos outros? Pelos
dedos deste malefício, mais vale um precipício.
1 comentário:
"Onde quer que um homem sonhe, profetize ou poetize, outro se ergue para interpretar"
(Paul Ricoeur, Da Interpretação)
https://www.youtube.com/watch?v=G8yEe55gq2c&list=PLukF-Eu8mdxY4mpEiD0PePKTJVxJ6xrO3
“World Citizen”, tema da banda sonora do filme “Babel”.
David Sylvian + Ryuichi Sakamoto
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