20.1.15

Casa ocupada

Lamb, "We Fall in Love", in https://www.youtube.com/watch?v=kPfmVhzRJHw
A casa desocupada. Vazia. Fria, porque vazia. Despida de almas, já que nunca foi habitada. As paredes desmaiadas, macerando a sua alvura na ausência de gente. Pois as casas só ganham valor quando são habitadas. Quando a força viva de gente lhes empresta personalidade. Antes disso, não passam de projetos de arquitetura, com o traço de um arquiteto (gente, portanto), mas disso não passam. Uma casa não é apenas um ingrediente da paisagem. Tem mais linhagem. Se por dentro delas não houver ninguém, continuam aprisionadas num anonimato que não lhes confere vivência.
Um dia, há gente que vem para dentro da casa. Que deixa pedaços do olhar nas paredes. Que dorme nos quartos, deles sobrando os vestígios dos seus muitos sonhos sonhados. Que confeciona simples ou opíparos repastos na cozinha, trazendo os odores para as paredes e o teto, entranhando um pedaço de cultura. Que tem pedaços de ócio no sofá, contagiando a casa com a cultura que vem dos livros, da música, dos filmes. A casa começa a ganhar personalidade. Com os móveis que a ornamentam, com os sentimentos que nela fluem, com as pessoas que a visitam, com as palavras que se dizem.
A casa, ocupada entretanto, enlaça-se nos sedimentos de quem nela habita. As janelas são os olhos por onde se deitam os olhares que vêm de dentro. É uma fortaleza. As cortinas são a muralha que a esconde dos olhares forasteiros e furtivos. Pois uma casa ocupada é um castelo fechado ao resto do mundo. Onde só contam os seus habitantes, num universo exclusivo que adeja sobre o resto do mundo. Neste habitat, tudo é irrepetível. Tudo é segredo. Menos para as paredes e o teto e as janelas e os móveis que emprestam autenticidade à casa. Mas daí não vem mal ao mundo. As paredes e o teto e as janelas e os móveis são o prolongamento de quem neles reside. A cumplicidade não tem freios. Dessa cumplicidade germina outro entrelaçamento que se aviva com a intensidade da casa: o do seus habitantes, soberanos de um reinado imenso dentro da exiguidade de uma casa.
A casa ocupada não tem tamanho. Não interessa se é pequena, ou se é grande; dentro da casa, há um reinado maior do que o resto do mundo. Por causa de quem nela habita. Por causa do nutriente das almas que se alimentam em reciprocidade. E do amor que transpira dos seus poros.

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