10.4.15

O gordo visionário

The Stranglers, “Peaches” (live at the Isle of Wight), in https://www.youtube.com/watch?v=_x64JbTAq0w
O gordo visionário tomou como suas as dores de parto da mátria. Excretou prosa. Reza a prosa que isto está pela hora da morte, tamanhos os sacrifícios (porventura inúteis e sem proporção aceitável), tamanha a miséria que aflige tanta gente colocada na lista do empobrecimento intencional. Excretou prosa, metendo, hélas, a unha em poda alheia. É o que acontece aos peritos de coisa alheia quando se pretendem conhecedores de uma poda que não é a sua, mas que tomam como sua. Asneiam, em conformidade.
O gordo visionário consegue ver muito para além do comum dos mortais. Usa o oráculo em que é proficiente e faz serviço público: adverte os concidadãos para a penumbra que encobre a lucidez, para o tempo medonho que se está a montar. E avisa que anda quase toda a gente distraída (tirando os habituais velhos do Restelo, que esses não contam por parcial ser a sua lente) para a catástrofe que está a rebentar. Ai de nós, gente de limitadas capacidades, se não fosse esta gesta de visionários.
O gordo visionário esgalha uns números em forma de estatística, sem revelar a fonte. Pode-se presumir, sem má intenção, que os números esgalhados saíram da cabeça prodigiosa do gordo visionário. Atamanca esses números num cenário caldeado pelas plúmbeas nuvens que se vêm e extrapola para o porvir. O rol de desgraças esperadas não é bom augúrio. Daí o gordo visionário, na posse das suas capacidades de presciência, ter tomado como suas as dores de um parto excruciante. Para ilibar a consciência de uma culpa qualquer, admite puerilmente.
Para embelezar a prosa condoída em forma de exercício cabalístico com predicados adivinhatórios, o gordo visionário eleva os seus pesados ossos ao trono de onde os predestinados decretam sentenças morais. Unta-se com a capacidade julgadora para revelar, contristado, que os valores estão em saldo e que a moral das gentes se afogou na bolsa dos valores. O gordo visionário não percebe que a moral é uma aventura arriscada; nem lhe é dado a entender (talvez por defeito de formação) que a ninguém deve ser dado o bastão que pesa a moral dos outros, não vão os outros dedicar desagradáveis palavras sobre os pergaminhos morais do julgador.
O gordo visionário podia-se barricar na astrologia. Em palhaço já sendo (no notório humor desinteligente de que é o primeiro a proferir sonora gargalhada), o ramalhete compunha-se com a entrega às artes de adivinhar o futuro. Pois é uma arte que dispensa ciência.

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