14.4.15

O parêntesis necessário

Tricky, “Parenthesis” (featuring The Antlers), in https://www.youtube.com/watch?v=1ZsPPljyFTo
(Concerto de Tricky, Casa da Música, 11.04.15)
Desta vez não houve público a saltar para o palco, convidado pelo artista. Não houve tanta comunhão. Mais introspeção. Entre os sons tribais e hipnóticos, era como se Tricky se contorcesse nas interiores dores. E as expulsasse em coreografias caóticas e  compulsivas, como se as veias estivessem comprimidas por um espaço exíguo e o corpo quisesse transbordar de si.
Ditatorial, comandou os músicos com gestos firmes, autocráticos, aos quais os músicos obedeciam sem esgar de desprazer. Não que fosse possível ver os rostos dos músicos: a penumbra foi cenário do concerto, não se distinguindo se não os vultos de Tricky em deambulações eletrizantes pelo palco, da voz feminina em repetitiva e feminil coreografia enquanto descansava a voz, do guitarrista de boné a descarregar nervo através das cordas da guitarra, do baterista que emprestava ritmo e comandava, através da batuta, as programações que continham a música sem ser em direto. Tricky tinha explosões desmedidas quando ordenava a música em aceleração. Dir-se-ia: exorcizava um demónio que o tomou por dentro. Consumições de uma mente atormentada. Dores de uma solidão esbatida, derrotada na hipnose tratada com os sons rituais.
Cinquenta minutos depois, encenou o fim do concerto. Mandam as convenções: os músicos regressam à convocatória do público, que se demora no aplauso que é tributo e, ao mesmo tempo, clamor por uma sobremesa da performance que seja seu epílogo, duas, três músicas para apurar os sentidos antes de as luzes se acenderem. Os outros músicos vieram primeiro. Tricky regressou à segunda música. Para a segunda parte. A parte mais memorável (é certo que tinha havido uma inesperada cover de “Do You Love Me Now”, das Breeders; e que o suposto autismo artístico levara Tricky a ordenar a interrupção abrupta de “Overcome” ao fim de uns acordes, para deceção dos admiradores mais antigos, dando corpo ao perfecionismo). Improvisações que davam novas roupagens a músicas, reinventando-as, fazendo-se maestro de uma jam session fulgurante, contaminando o público que, enfim, se soltou das amarras das cadeiras e destravou danças descoordenadas.
Desta vez, Tricky não ficou no fim do concerto para tirar fotografias com quem as quisesse guardar para a posteridade. Nem apareceu, de supetão, nas costas do público. Desta vez, como da outra, vagueou no palco, pegou nos microfones percutindo-os contra o peito – como se quisesse ecoar as dores interiores para fora de si –, gritou longe dos microfones fazendo-se ouvir num sussurro gutural. Como da outra vez, deitou a raiva com movimentos vertiginosos da cabeça que serpenteava de um lado para o outro como se fosse desprender. E, como da outra vez, o impreterível charro acendido e reacendido entre duas músicas.
Apeteceu meter parêntesis no marasmo só para transgredir, transgredir até que as alvoradas fossem entardeceres com o sol virado do avesso. Para que as bissetrizes aparecessem desarranjadas e as palavras proferidas soassem a desconhecido. Para aplacar a raiva toda que se consome no fermentar das prepotências e dos abusos que povoam a desrazão. Pois um concerto é (também) revirar as entranhas do avesso. Como Tricky ensina e poucos sabem.

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