My
Bloody Valentine, “Only Shallow”, in https://www.youtube.com/watch?v=FyYMzEplnfU
Medina Carreira à porta
da discoteca onde se dança kizomba. É o porteiro. Enverga uma fatiota que o faz
parecer um padre, como se fosse uma longa sotaina, só que cor de laranja e sem
o colarinho eclesiástico. Controla as entradas. Dedilha as notas já conseguidas
entre os dedos e, quando o faz, os olhos brilham de excitação. Djaló chega-se à
porta. É cliente habitual, com garrafa de uísque reservada e demais mordomias.
Medina Carreira não sabe do estatuto. Aquele é só mais um preto que vem para
serpentear o corpo lânguido nas danças tribais que acompanham a música a
preceito. O porteiro barra a entrada a Djaló e comandita. Põe-se uma altercação
dos diabos. Medina Carreira despe a quase-sotaina, arregaça as mangas da camisa
colorida e assesta um murro na cabeça de Djaló. Ato contínuo, o bispo de
Setúbal (que estava na fila de espera) desfaz a confusão. Haja quem respeite a
autoridade eclesiástica.
A risonha apresentadora
da RTP Porto, que substitui a falta de jeito para a função com um sorriso que
tem tanto de perene como de fastidioso, tem um cavalo como animal de estimação.
Vai metê-lo na varanda do condomínio de luxo. O cavalo, puro sangue lusitano,
foi prenda de um ilustre, mas todavia anónimo, admirador. Custou os olhos da
cara. A sorridente apresentadora, boquiaberta com a deferência, prometeu aos
três neurónios que o animal teria abrigo na varanda que dá para a piscina. Os
vizinhos nem protestaram. À menina tudo se admite. Ou tudo tem de se admitir – foros
de uma estrela de televisão. Se alguém protestasse, o presidente do clube local
encomendava uns seguranças da noite para exercitaram a brutalidade dos músculos
disformes, repondo a ordem ditada pela vontade da senhora.
Um filósofo com propensão
para a vida mundana, um escritor eremita e uma senhora de famílias das melhores
linhagens encontram-se à beira de uma caixa multibanco. Ao mesmo tempo, quase
em atropelo. A senhora fica à espera de ato cortês dos cavalheiros (que lhe
cedam passagem, como mandam os costumes). O escritor eremita vem mergulhado nos
seus esotéricos pensamentos. Nem reparou que quase tropeçava na senhora das
melhores linhagens e no filósofo pedante. Este, membro da elite académica e
cultor de privilégios que devem assistir à casta, passa à frente da senhora do jet set. A senhora protesta. Perante a
indiferença do filósofo, a senhora tira o sapato de salto alto, de marca de
requinte, e manda-o à cabeça do filósofo. Irado, volta-se para trás e morde a
senhora numa macilenta bochecha, partindo dois dentes (a maldita mulher estava
numa dieta da moda, mirrada que só se lhe via os ossos colados à pele). O
escritor eremita prosseguiu pelo meio da refrega, nem dando conta da violência.
Que entretanto foi apaziguada pelo bispo de Setúbal. Valha-nos o respeito pela
autoridade eclesiástica.
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