29.4.15

Fragmentos de um entardecer

Cat Power, “The Greatest”, in https://www.youtube.com/watch?v=7X8eIRv3uew
Diz-se dos ocasos que içam as bandeiras da memória. Porque um ocaso, como é o entardecer, empalidece as cores diante dos olhos. Antes que os olhos marejem na decadência febril, viram-se do avesso e partem em demanda das recordações emolduradas num canto do pensamento.
Jogam-se os dados que arregimentam o calendário antepassado. Sopesam-se os seus pesares, os seus fulgurantes retratos, as açoteias das palavras que não deviam ter sido silêncios, os promontórios de onde se avistam proezas em forma de carta de recomendação. Passa tudo diante de uma imaginária tela enquanto os olhos se detêm de frente para o mar, notando no sol poente que se adelgaça à medida que o horizonte o engole. Numa revoada de flash-backs, a imensa linha do tempo também se adelgaça, comprimida no exercício contemplativo do pretérito. Os tementes do futuro e os inebriados com o coevo dirão que revistar as recordações é função condenada à inutilidade.
Qual é o préstimo da nostalgia? Pode não ser nostalgia. É só alinhavar num punhado do tempo o que compulsa intemporalidade. O amanhã não se alimenta de tempos ausentes. Às vezes, há um apelo irrecusável que vem das entranhas, um apelo a peregrinarmos pelos fragmentos que são o resumo avivado da longa linha do tempo sedimentada. Não será pura perda de tempo. Nem afivelamos o ultraje do agora, que esse trata de condensar no instante todos os pretéritos que coseram os alicerces em que assentamos. Esses fragmentos são úteis. Sabendo que a nostalgia não resgata outrora nenhum e pode, em caso de teimosia, trespassar de morte o único fragmento de tempo que tem serventia (o atual). A demanda do tempo açambarcado pode ser a semente da melancolia.
Ninguém surge do nada. Nem o tempo é uma marca que disfarça o que está para trás. Trazemos de lá o que somos. Essa é toda a serventia dos idos tempos resgatados da altura em que o foram. De resto, olhamos de frente para a embocadura do mar que se alinhava diante dos olhos. É por aí que o corpo se mete. Com o lastro do outrora que nos pertenceu, para sabermos ser zeladores da medida do tempo que nos propõe cada alvorada. Sem nos havermos por reféns de um tempo mortiço.

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