3.4.15

Pé-de-cabra

Spoon, “Incide Out”, in https://www.youtube.com/watch?v=IpT5SBg1Mmk
Era fortaleza feita de pedra dura, montada no monte mais alto. Onde era tão difícil chegar. Não queria intrusões. Não queria cometimentos alheios, temendo que a sua identidade, que só lhe dizia respeito, sofresse um rombo por ares vindos de fora.
Havia registo de várias tentativas. Não se tratava de invasões, como na idade média com os cavaleiros que palmilhavam as terras em demanda de novas conquistas. Ou: era uma invasão diferente, sem a impregnação de violência que vem com as invasões bárbaras. Talvez temesse não aprender a partilhar o domínio da sua fortaleza. Fechava-se a sete chaves. Repelia, com indisfarçável descortesia, os empreendimentos de quem ousou coabitar a fortaleza. Ele eram tantos os episódios de águas furtadas, de sol tresmalhado, de olhos arrebatados por ardis, e tantas as ruínas de todos os que se tinham despojado ao abrirem as janelas de par em par – ele era tudo isto, e por tudo isto a fortaleza era à prova de bala.
Havia quem teimasse na demanda. Talvez pelo feitiço do mistério, uma atração irremediável para muitos. Tentaram de todas as maneiras. Com lhaneza ou complexa astúcia. Com franqueza ou insinceridade. Em carne e osso ou enviando emissários em nome próprio. Em todas as estações do ano, com as condições que a meteorologia oferecesse na circunstância. Prometendo apenas a singeleza de quem se oferecia para a coabitação na fortaleza, ou fabricando falinhas mansas de entremeio com promessas de abastança (sabendo à partida que era impostura). Houve quem viesse com propósitos nobres e quem se convencesse que a função teria de ir à sua foz, usasse os meios que fossem necessários.
Houve quem, perante a indiferença do habitante da fortaleza, tivesse usado pé-de-cabra. Podiam as portadas e as janelas da fortaleza ser de aço maciço, que o pé-de-cabra conseguiria abrir uma fenda (que fosse) por onde depois a perseverança trataria de escavar abertura mais larga. Sempre de atalaia, o habitante da fortaleza repelia as incursões. Ao promotor do pé-de-cabra (manha nunca usada outrora), atirou ácido sulfúrico. Ao mesmo tempo que gritava, a plenos pulmões, para os ardinas o ouvirem no exterior da fortaleza: “mandem dizer que daqui não levam nada. Desistam. Não são mais teimosos que eu. Desistam – eu não tenho serventia. Não queiram saber de mim. Não queiram essa carga de trabalhos.

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