Tame
Impala, “Let It Happen” (Live on Conan), in https://www.youtube.com/watch?v=Qay6t5UpnhM
O cão vadio desatava num corrupio
atrás da cauda, dando voltas e voltas até quase desmaiar de tonturas. Ao contrário
do que intuíam os populares que não disfarçavam a gargalhada quando viam o
canídeo em busca do apêndice ao fundo das costas, o animal não era desprovido
de inteligência. Ele comparava-se com os homens, não lhe interessavam os outros
cães. Notava uma primeira diferença: via os homens em pé, bípedes, mas ele era
quadrúpede. Descontava essa diferença, a que não atribuía importância.
O que despertava a
atenção no cão? Os humanos não têm cauda atrelada aos fundilhos do corpo.
(Notou, porém, que algumas espécimes de sexo feminino escorregavam
languidamente pela rua com uma protuberância ao fundo das costas, a que uns operários
da construção civil com propensão para o piropo sem graça chamavam “rabo”.)
Entristecido, notou que em si a cauda era um excesso a descartar. Nem por ver
outros da espécie canídea a ostentarem caudas de variáveis proporções se
demoveu da ideia que metera na cabeça: dera-se o caso de ser deficiente. Tinha
de remover a deficiência do seu corpo. Tanto meteu na cabeça esta ideia que, em
não sabendo da existência de cirurgiões plásticos, tratou ele mesmo da
empreitada. Era vê-lo em constantes manobras circenses, que tanto compraziam o
público que reparava nele, a bocarra aberta com a dentição afiada, a cabeça
furiosamente querendo alcançar a cauda.
Um dia, já o desespero da
função desatendida quase o levara à loucura (e à magreza), o cão chamou a
atenção de um empresário de variedades. Que o adotou e, a troco de comida
regular, banho para alindar a penugem, tratamento contra os parasitas que
desatavam uma coceira danada e toca segura e quente, fez dele artista de circo.
As crianças quase iam à apoplexia de tanto se rirem com o contorcionismo
canibal do pequeno cão. Só não conseguia perceber a fama. Continuava apostado
em abocanhar a cauda excessiva.
Na enésima tentativa, numa
conjugação cósmica de fatores (ou apenas mercê de fissura numa vértebra que
permitiu à boca tocar na outra extremidade do corpo), o cão conseguiu morder a
cauda. Parecia que alguém o estava a matar. Não parou enquanto não seccionou a
cauda com os dentes. A teimosia era tanta que nem notara na dor. Só depois,
quando se começou a esvair em sangue.
A carreira circense do cão
terminou com a ablação da cauda. O cão perdera serventia. Só não foi deitado
fora como excrescência inútil porque a filha do dono do circo se enamorou do
cão sem cauda.
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