Nick Cave and the Bad
Seeds, “Push the Sky Away (live)”, in https://www.youtube.com/watch?v=DyDJ5jcwSUg
Temos carência de uma
gramática nova. Uma que abrace a inventividade narrativa, que abra os braços às
palavras que não soam parentes entre si. Uma gramática tutelar da musicalidade
das palavras que se entoam em estrofes espraiadas em prosa.
Uma gramática que não
tenha medo das palavras, nem das que são tabus, ou as do vernáculo, ou das
palavras desconchavadas, nem dos introitos suspeitos, dos chãos atapetados com
floreadas palavras, ou das mãos suadas acabadas de mergulhar em sumptuosas
palavras, dos advérbios de modo que apetece pôr fora do lugar e dos adjetivos perturbadores
que povoam frases onde bem apetecer. Talvez, e de vez em quando, apeteça montar
frases de que não se cose o sentido, desafiando o leitor a reinventar o seu
sentido, fazendo-o coautor através da reinvenção do texto. Uma gramática
fulgurante que se renove sem regras, pois as regras são um espartilho que assombra
a criação. Gramática sem embaraços. Gramática que bebe nas veias do escritor, supremo
mantra da subjetividade (de quem escreve, mas também do império de quem lê). Gramática
sem idade. Sem cores. Ou com as cores que apetecer e depois vier a desapetecer.
Uma gramática à
medida das histórias que forem contadas. Uma espada enfiada nas convenções
vetustas, sangrando-as – verbos que não quadram com o predicado, substantivos sem
memória do género, vírgulas fora do lugar, pontos finais que são um mar em
aberto, pontos e vírgulas reinventados, parágrafos desobedientes, degraus
desiguais na confeção de um texto irrisório ou de um texto que, sem ninguém
apostar, subiu à apoteose da literatura.
Sem paradigmas, a
gramática nova. Deixando os cães ladrar para o papel, com o virtuoso tradutor
universal a debitar a escrita, os cães autores improváveis. Cegos sem
precisarem de Braille. Até os analfabetos, narradores sem ajuda de terceiros.
Viajantes contando as viagens sem o opaco deslustre das palavras descritivas
que esvaziam as imagens narradas. Palavras em jeito de fotografia, com a
luminosidade das imagens incorporada nas palavras. Frases simples, frases rendilhadas,
entrecortadas (sempre em obediência ao desejo do momento) com construções eruditas,
para desaguar de novo na simplicidade como artefacto mais desejado e, todavia,
mais árduo de conseguir.
Uma gramática que
deixasse de ser gramática. Sem levar os curadores da língua à apoplexia: esta
(não) gramática não seria elisão da língua. Deixando o trono à palavra.
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