29.10.15

Da portugalidade obstruída

LCD Soundsystem, “North American Scum”, in https://www.youtube.com/watch?v=gJ2np7R-Uwg
Esta terra – melhor: os seus nativos – precisa de um gigantesco divã. Na necessária psicanálise coletiva, com peritos vindos do estrangeiro, precisa, esta terra, de expiar fantasmas, de repelir apoucamentos de si mesma, de ter capacidade para voltar a olhar por cima do olhar, sem tibiezas, sem receios de decair na decadência que tem antolhado os tempos últimos.
Precisa, esta terra, de uma nova portugalidade. Mas a nova portugalidade convoca um exercício holístico, completo, cobrindo os tempos inteiros, sem afastar os tempos que foram embaraço na história. Pois talvez não seja má ideia devolver aos tempos cunhados com glória a responsabilidade pela pequenez sorumbática a que nos confinámos. Acontece quando o corpo se eleva aos patamares da grandeza; como a glória não é perpétua, a decadência é mais dilacerante para os que outrora se banharam nas águas miríficas de uma glória qualquer. Daí à crise existencial, vai um passo.
Para piorar o diagnóstico, e talvez como lastro desse antanho de proezas pátrias, não aceitamos quando a portugalidade é desprezada. Não aceitamos quando quem tem o topete de o fazer vem de fora; lidamos mal quando o exercício é autocontemplativo, esbracejando com o ultraje da traição a quem tiver essa ousadia. Diz-se: não se escarnece da grandeza que ficou imortalizada na história; o respeito que merecemos, como legatários desse húmus, não transige com troças. Levamo-nos muito a sério.
Se não nos levássemos tão a sério, não sentíamos o ultraje dos que querem difamar a portugalidade. Se calhar, esse (a portugalidade) era assunto irrelevante. E mais irrelevantes seriam as suas difamações. É um nó que não conseguimos desatar. Se nos levássemos menos a sério, se conseguíssemos olimpicamente troçar com o que somos, não pesavam as nuvens sombrias que, depois, caucionam uma idiossincrasia tristonha (o fado; o amesquinhar do ser diante do altar da religião; o respeito irrecusável pelas sumidades que instruem; a desvalorização do indivíduo, convocado a inclinar-se perante o coletivo que canta um hino e deifica uma bandeira; a propensão genética para tolerar governantes totalitários, pois o poder exige “pulso forte”). É um labirinto sem saída: por querermos ser tanto em honra dos legados ancestrais, e por estarmos reduzidos a um pequeno nada, o contraste é atroz. A portugalidade está obstruída pelo estigma do passado e pela opacidade do futuro.
Não devia vir mal ao mundo em admitirmos que somos um lixo (a juntar a outros lixos algures), um punhado de gente irremediável, desalentada, desfigurada do tempo futuro, canhestra às vezes, críticos de nós mesmos e ao mesmo tempo intolerantes quando a troça vem de fora. Nenhum daqueles atributos é necessariamente um mal.

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