Tv on the Radio, “Wolf Like
Me” (live on Letterman), in https://www.youtube.com/watch?v=MxawVMQ02dc
Longe dos povoados. Não queria proximidade com os
humanos. Não confiava. Não queria coincidir no mesmo pedaço de terreno: os
instintos ensinavam que era uma questão de vida ou de morte, de alguém fadado a
sobreviver e de outro convocado para o cadafalso da morte. O lobo não queria o
papel de vítima. Mas também não queria o papel de algoz. A cada vida ceifada,
nem que fosse em defesa da vida própria, sabia que lhe dariam caça implacável.
Só havia uma forma de evitar o estado de guerra com os
humanos: transitar pelas estepes desertas, pressentir, pelo faro, a existência
de gente nas redondezas e virar as costas para o lado oposto. As montanhas e as
florestas eram viveiros de alimentos, não precisava de hostilizar os humanos
nem havia préstimo em ser deles rival. Pois ficava a perder. A desproporção de
forças condenava o lobo a ser presa. Nem sequer vinham em seu benefício as leis
que protegiam o lobo a pretexto de ser espécime em extinção. O homem, o homem
profundo, imerso na boçalidade do meio rural, não sabia de tais leis. E mesmo que
soubesse, passava sobre elas como um corpulento cilindro asfalta um caminho.
Era a sina do lobo. Viver escondido. Sob anonimato. Poucos
foram os humanos a conseguirem vê-lo por entre a vegetação rala das estepes, por
entre as alcantiladas serranias. O lobo vira mais gente do que gente pusera os
olhos nele. Essa era a ordem natural das coisas. Desafiá-la era como se o lobo
assinasse a sua própria sentença de morte.
Um dia, o lobo destemeu-se. Desceu ao povoado mais próximo.
O gado, apascentado por um pastor desatento, agitou-se. É que o gado conhece os
predadores por instinto. Mas o lobo não vinha com más intenções. Estava esfaimado,
mas não desceu ao povoado para matar a fome. Faminto, mas doente, não tinha
preparos para se alimentar. Estava esquelético, o pelo encrespado e baço, os
olhos cansados, caminhava a custo. Era o seu estertor.
A lenda conta que o lobo ensandeceu. Que se quis dar a
conhecer ao povo. Demente como estava, não se habilitou com as consequências do
tresloucado ato. Devia adivinhar que o povo lhe daria caça, sem misericórdia. Frágil,
nem deu luta. Mas um menino, que assistiu contristado à carnificina, leu as
coisas por outra lente. O lobo sofria da enfermidade que o havia acometido. Foi
ele que se meteu na boca do lobo, em sentido metafórico, mas foi de propósito. Para
acabar com a dor pungente. O povo, esse, exultou. Era menos um rapinador de
gado. A preceito, tresleu o ato e viciou uma lenda.
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