Sigur Rós, “Von (live at
BBC)”, in https://www.youtube.com/watch?v=d7M_gt_Zc44
Havia pirotecnia nos céus. Troavam oboés assustadores
atrás das nuvens medonhas, das nuvens que se encavalitavam como se brigassem
pela sobrevivência. No meio da noite, umas centelhas iridescentes incendiavam
os céus.
No quarto, à falta de luz pela interrupção da
eletricidade, a leitura fazia-se no computador portátil – que ainda aguentava
umas horas sem precisar de alimentação da bateria. Os dois cães estavam
assustados, desorientados pelo ribombar dos trovões, pela descarga de um relâmpago
que emprestava uma rara luminosidade à noite profunda. Latiam a medo, as
orelhas metidas para trás, tiritando e não era de frio. De repente, soltou-se
uma ventania furiosa. Era como se a tivessem aprisionado contra vontade e que,
de freios soltos, se quisesse vingar da reclusão.
As baforadas de vento quase levantavam a casa do chão. Tudo
tremia, quase como se um demorado terramoto experimentasse os esteios em que a
casa fundeava. Os cães esconderam-se debaixo da cama. Uivavam, como se
pressentissem que o mundo estava no limiar da finitude. Do homem, nem o menor
sobressalto. Assomou à janela. Desde criança que se lembrava de passar tempo
sem conta à janela de cada vez que uma tempestade arrimava a terra, trazendo um
bocado da fúria do mar. Pouco conseguia ver lá para fora: a luz dos candeeiros ainda
não tinha regressado. Conseguia ver as árvores dobradas sobre o dorso, numa
elasticidade que julgava impossível. Pareciam contorcionistas; mas não partiam,
nem pela raiz nem por parte nenhuma. Pareciam feitas à prova da pior
tempestade. Torrentes de água tomaram conta das ruas. Desciam a rua maior como
se fossem um rio que tomou a rua como seu leito. Havia detritos por todo o
lado.
Um dos cães espreitou desde o refúgio que era debaixo da
cama. Queria saber onde estava o homem que o adotou num albergue de animais
abandonados. Porventura o cão sentia que ao sentir-se na companhia do homem mal
nenhum lhe acontecia. A presença do homem era sedativa. Talvez por o terem ouvido
contar histórias do tempo em que fora embarcadiço, das medonhas tempestades de
que foi testemunha. O homem terminava a narração sempre da mesma maneira:
- As tempestades são encomendadas
pelos deuses. Mas os deuses têm um bom temperamento, não admitem que as
tempestades levem a vida de gente. Pelas tempestades, os deuses coreografam uma
dança para meter medo aos mortais. Para os ter em sentido. Não é preciso ter
medo do silvar medonho dos ventos, ou da chuva tempestuosa que alaga as ruas,
nem da pirotecnia cataclísmica. As danças são sempre para aplaudir.
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