19.10.15

A dança dos deuses

Sigur Rós, “Von (live at BBC)”, in https://www.youtube.com/watch?v=d7M_gt_Zc44
Havia pirotecnia nos céus. Troavam oboés assustadores atrás das nuvens medonhas, das nuvens que se encavalitavam como se brigassem pela sobrevivência. No meio da noite, umas centelhas iridescentes incendiavam os céus.
No quarto, à falta de luz pela interrupção da eletricidade, a leitura fazia-se no computador portátil – que ainda aguentava umas horas sem precisar de alimentação da bateria. Os dois cães estavam assustados, desorientados pelo ribombar dos trovões, pela descarga de um relâmpago que emprestava uma rara luminosidade à noite profunda. Latiam a medo, as orelhas metidas para trás, tiritando e não era de frio. De repente, soltou-se uma ventania furiosa. Era como se a tivessem aprisionado contra vontade e que, de freios soltos, se quisesse vingar da reclusão.
As baforadas de vento quase levantavam a casa do chão. Tudo tremia, quase como se um demorado terramoto experimentasse os esteios em que a casa fundeava. Os cães esconderam-se debaixo da cama. Uivavam, como se pressentissem que o mundo estava no limiar da finitude. Do homem, nem o menor sobressalto. Assomou à janela. Desde criança que se lembrava de passar tempo sem conta à janela de cada vez que uma tempestade arrimava a terra, trazendo um bocado da fúria do mar. Pouco conseguia ver lá para fora: a luz dos candeeiros ainda não tinha regressado. Conseguia ver as árvores dobradas sobre o dorso, numa elasticidade que julgava impossível. Pareciam contorcionistas; mas não partiam, nem pela raiz nem por parte nenhuma. Pareciam feitas à prova da pior tempestade. Torrentes de água tomaram conta das ruas. Desciam a rua maior como se fossem um rio que tomou a rua como seu leito. Havia detritos por todo o lado.
Um dos cães espreitou desde o refúgio que era debaixo da cama. Queria saber onde estava o homem que o adotou num albergue de animais abandonados. Porventura o cão sentia que ao sentir-se na companhia do homem mal nenhum lhe acontecia. A presença do homem era sedativa. Talvez por o terem ouvido contar histórias do tempo em que fora embarcadiço, das medonhas tempestades de que foi testemunha. O homem terminava a narração sempre da mesma maneira:
- As tempestades são encomendadas pelos deuses. Mas os deuses têm um bom temperamento, não admitem que as tempestades levem a vida de gente. Pelas tempestades, os deuses coreografam uma dança para meter medo aos mortais. Para os ter em sentido. Não é preciso ter medo do silvar medonho dos ventos, ou da chuva tempestuosa que alaga as ruas, nem da pirotecnia cataclísmica. As danças são sempre para aplaudir.

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