Rage Against the Machine, “Bulls
on Parade”, in https://www.youtube.com/watch?v=3L4YrGaR8E4
Uma sobremesa, segundo o guião. Os ovos, o açúcar, a
farinha, outros ingredientes precisos para a montagem da iguaria. E a destreza
final: os dotes artesanais para emprestar a beleza sempre necessária, ou não estivéssemos
no hedónico altar que faz por merecer aos outros sentidos o que só os olhos
começam por comer.
O guião, em forma de receituário, é herança de gerações
anteriores. Imaginemos: a doçaria conventual. Património gastronómico e
cultural. Pode até alguém com alergia ao conservadorismo protestar se um chefe
de cozinha, com propensão para a reinvenção da gastronomia, se propuser a
desconstruir a iguaria e a reconstruir como se no final se embebesse em nova
marca genética. Dirão os que querem os cânones fora das convenções, assim
reinventadas: nada pode ficar intacto quando as sombras das convenções de
antanho mandam que as coisas sejam intocáveis. Se a doçaria conventual é património
das tradições, que não fique refém da letargia que mete travões à reinterpretação
dos sabores através de um novo guião. Se os conservadores protestarem,
ensinem-lhes que o mundo avança com o tempo que não é inerte. Ensinem-lhes que
os sabores merecem sair da estreita caixa de medição de sentidos a que estão
habituados. Talvez aprendam a gostar da doçaria conventual reinventada. Quem
pode recusar os méritos da aprendizagem?
Na gastronomia, há ingredientes que exigem utilização moderada.
Ingredientes potentes ao nível do paladar. A baunilha, por exemplo. O desafio é
ter cuidado ao deitar umas pitadas de baunilha depois de raspada a vagem. Não se
quer que a sobremesa saiba só a baunilha, nem se pretende que o efeito da junção
da baunilha seja indiferente ao sabor. A medida certa é o mais difícil. Pode-se
usar de prudência e, com a ajuda do paladar, ir provando à medida que se
adicionam pequenas raspas de baunilha. Até chegar o julgamento do equilíbrio e
a baunilha perfumar sem adulterar, sem ser o colonizador da doçaria e sobrar
como o único sabor que o paladar consegue sentir.
O mal é que às vezes se passa da medida. Uns quantos gramas
a mais e, apesar de ser uma ínfima parte do preparado total, o efeito é
contaminante. O preparado total fica sitiado pelo sabor forte da baunilha. Não se
nota mais nada ao experimentar a iguaria. Que deixou de ser iguaria, destruída
pela imoderada utilização de um ingrediente tão apreciado.
(Metáfora para os tempos conturbados que aí vêm –
politicamente falando.)
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