20.10.15

Efeito baunilha

Rage Against the Machine, “Bulls on Parade”, in https://www.youtube.com/watch?v=3L4YrGaR8E4
Uma sobremesa, segundo o guião. Os ovos, o açúcar, a farinha, outros ingredientes precisos para a montagem da iguaria. E a destreza final: os dotes artesanais para emprestar a beleza sempre necessária, ou não estivéssemos no hedónico altar que faz por merecer aos outros sentidos o que só os olhos começam por comer.
O guião, em forma de receituário, é herança de gerações anteriores. Imaginemos: a doçaria conventual. Património gastronómico e cultural. Pode até alguém com alergia ao conservadorismo protestar se um chefe de cozinha, com propensão para a reinvenção da gastronomia, se propuser a desconstruir a iguaria e a reconstruir como se no final se embebesse em nova marca genética. Dirão os que querem os cânones fora das convenções, assim reinventadas: nada pode ficar intacto quando as sombras das convenções de antanho mandam que as coisas sejam intocáveis. Se a doçaria conventual é património das tradições, que não fique refém da letargia que mete travões à reinterpretação dos sabores através de um novo guião. Se os conservadores protestarem, ensinem-lhes que o mundo avança com o tempo que não é inerte. Ensinem-lhes que os sabores merecem sair da estreita caixa de medição de sentidos a que estão habituados. Talvez aprendam a gostar da doçaria conventual reinventada. Quem pode recusar os méritos da aprendizagem?
Na gastronomia, há ingredientes que exigem utilização moderada. Ingredientes potentes ao nível do paladar. A baunilha, por exemplo. O desafio é ter cuidado ao deitar umas pitadas de baunilha depois de raspada a vagem. Não se quer que a sobremesa saiba só a baunilha, nem se pretende que o efeito da junção da baunilha seja indiferente ao sabor. A medida certa é o mais difícil. Pode-se usar de prudência e, com a ajuda do paladar, ir provando à medida que se adicionam pequenas raspas de baunilha. Até chegar o julgamento do equilíbrio e a baunilha perfumar sem adulterar, sem ser o colonizador da doçaria e sobrar como o único sabor que o paladar consegue sentir.
O mal é que às vezes se passa da medida. Uns quantos gramas a mais e, apesar de ser uma ínfima parte do preparado total, o efeito é contaminante. O preparado total fica sitiado pelo sabor forte da baunilha. Não se nota mais nada ao experimentar a iguaria. Que deixou de ser iguaria, destruída pela imoderada utilização de um ingrediente tão apreciado.
(Metáfora para os tempos conturbados que aí vêm – politicamente falando.)

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