15.10.15

O homem arqueado

Mark Lanegan Band, “The Graveddiger’s Song”, in https://www.youtube.com/watch?v=zP5GWYXp4d0
Dorso pendido, dir-se-ia, o peso de suportar um peso da responsabilidade. Era diferente naquele homem. Pela curvatura do dorso, mais acentuada do que nos demais. Até lhe chamavam corcunda. Com o passar do tempo, a protuberância notava-se à vista desarmada.
O homem consultou especialistas. Era tanto o incómodo, tantos os olhares bisbilhoteiros (outros com um esgar de troça), que tinha de saber da enfermidade. Fez exames médicos, foi a cinco médicos diferentes; mas todos ficavam impassíveis ao lerem os exames: aparentemente, não havia disfunção, óssea ou muscular, que explicasse a deformação nas costas. E como os médicos são formatados pelos cânones da normalidade, se a afeção não vinha nos livros não era da sua conta prescrever cura para um mal que não existia (de acordo com os livros sagrados). Mas o pobre homem arqueava de dia para dia. Começava a ter vergonha de sair à rua: não era agradável ouvir estroinas a chamá-lo, alto e bom som, corcunda.
Se o mal não vinha nos livros dos médicos, talvez um curador dos males da cabeça pudesse ajudar. Foi a um psicólogo. Quem sabe se aquela curvatura não era, também, psicológica? Por via das dúvidas, decidiu frequentar ao mesmo tempo os divãs de três psicólogos e de dois psiquiatras – os haveres eram abundantes, o dinheiro para lhes pagar não era problema. Os psicólogos perguntaram pelas angústias. Pelas perplexidades. Pelos temores. Pelas fobias. Se tinha aversão à atualidade. Ou medo de alguém. Alguns, com propensão para a hermenêutica onírica, até indagaram sobre a viabilidade dos sonhos – mas ele não se lembrava do roteiro dos sonhos.
Foi tudo compulsado numa matriz analítica (como os psicólogos gostam de dizer em língua de trapos, só para justificarem a avença). O homem sentia acusar o peso do mundo inteiro. As injustiças, de todas as formas e feitios, tiravam-lhe o sono. Não suportava ver um indigente de mão estendida, um sem-abrigo a procurar o sono debaixo de uma ponte, um animal vadio maltratado, mulheres e homens liquefeitos pelo desamor, crianças sem o adocicado carinho pelo menos dos pais, progenitores que o mais que fizeram foi copular para parir (e por isso de progenitores não passavam). A cada dor do mundo que tomava em si, o dorso arqueava. Não conseguia suportar o peso do peso de um mundo com cores terríveis.
Arqueado, sofria em nome dos que padeciam de sofrimentos vários. Nem que tivesse de pagar o preço do dorso arqueado. Que a sua corcunda, ao menos, dissolvesse as dores de quem as sofresse. Contra a recomendação dos psicólogos e dos psiquiatras, que o desenganaram a esse respeito.

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