21.7.17

Dez horas, ou o travessão da modernidade


New Order, “Age of Consent”, in https://www.youtube.com/watch?v=8ahU-x-4Gxw    
Dez horas. Faltavam dez horas para a hora marcada. Passava o relógio em revista. De minuto em minuto. Depois, sem esperar pelo circuito inteiro dos sessenta segundos. Já faltava menos de dez horas, muito menos, e os olhos estavam em simetria com o relógio. Anestesiados por ele, como se olhos e relógio fossem um mesmo. O tempo parecia não passar; o relógio parecia ter avariado – ou era o sono que consumia as ilusões e, prisoneiro de um sonho, estivesse refém de um tempo emoldurado em sua inércia. Do sonho vinham outras alvíssaras. Não podendo aferir do vencimento do desafio, e com a pusilanimidade própria dos que se angustiam com desafios e com a possibilidade de por eles serem derrotados, enquistou-se nas memórias. Mergulhou nas águas paradas, fétidas, do pretérito. Estava convencido que o parêntesis no tempo adiaria o desafio e não seria fustigado pela humilhação do malogro. Já não eram dez horas. Não eram horas nenhumas.
Dez horas. Já eram dez horas. O dia estava quase no pináculo. Parte desse decálogo de horas é como se não tivesse existido. Esta é a ilação quando se mede o pulso ao tempo consumido no sono. O verbo não é por acaso: consumido, como quem diz, gasto. Consumido, ainda, no sentido de desmatar consumições. Um desperdício, o sequestro dos sentidos. Quem congeminou a espécie convencionou que os seus intérpretes teriam de dedicar um número considerável de horas ao sono. Frenético, não se convencia desta fragilidade antropológica. As horas vertidas no sono eram um travão ao conhecimento. A humanidade era decididamente pasto da imperfeição. As dez horas eram um sacrílego mostruário de preguiça, pois mais de metade delas tinham sido evaporadas no sono. Sabia-o bem. Por mais que se insubordinasse contra a necessidade do sono, era derrotado pela indolência. Vezes de mais. O tempo devia ser recontado e as horas de sono subtraídas à medida das vinte e quatro horas.
As dez horas. As horas mais emblemáticas. Alguém pediu que as inventariasse. Ficou perplexo. Primeiro, por não ser demanda habitual. Desafios destes costumam contemplar os dez dias mais significativos, ou os dez momentos que com lugar cativo nas memórias. Julgava empreitada impossível. A medida do tempo, a medida válida para a consubstanciação das memórias, não é o hermetismo de uma hora. Segundo, era seu hábito recusar pedidos deste teor. Eram concursos inúteis. Uma perda absoluta de tempo. Concorriam para a ignomínia do desperdício de tempo apalavrada a propósito das horas consumidas no sono.
Dez horas. Uma vez fez uma viagem de dez horas. Não foi a sua viagem maior. Não podia dizer que esteve consecutivamente dez horas ao volante, pois automóvel nenhum tem autonomia para tanta viagem ininterrupta. De outra vez, até esteve em viagem sem interrupção por mais de dez horas (uma viagem de avião entre Madrid e Santiago do Chile). A medida do tempo não é a objetividade matemática corporizada na tirania de um relógio, ou na tirania das convenções. Para o relógio, um minuto tem sempre sessenta segundos e os segundos passam todos à mesma velocidade. Para o relógio interno de uma pessoa, o tempo tem diferentes diapasões.
Estava convencido que era possível, em assim querendo, hibernar temporariamente. Desmentindo a tirania do tempo. Talvez esse fosse o segredo do envelhecimento retardado. E a báscula invisível da modernidade.

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