11.7.17

Estado de desgraça


Radiohead, “Pyramid Song” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=7DH4w27FXeY    
Ele não se acusava desgraçado: no seu dicionário privativo, desgraçado é a pessoa de quem a graça – no sentido de fortuna, mas não no sentido material – anda arredia. Nem reivindicava estatuto de vítima, pois o que mais há é desgraçados que fazem do estatuto profissão (ou estado de alma) e animam as atenções em forma de comiseração – como se a comiseração aplacasse os infortúnios que sobre eles se abatem. Não é o contexto de desgraça que ele corporiza.
Um estado de graça é, neste horizonte, o antónimo do estado de desgraça. Os cânones mandam dizer que só quem já esteve em estado de graça é que pode cair em estado de desgraça. Os olhos contemporâneos podem ajuizar ser o estado a que chegou o governo. Mas a política e os negócios da nação não são para aqui chamados. Ele discordava do preceituado anterior (não do diagnóstico atual do governo de salvação nacional). Não era preciso ter estado em estado de graça para depois se achar nos sumiços da desgraça. Ele há muita gente que vai de um púlpito ao fundo do poço num instante. Que isso não seja confundido com relação causal entre graça e desgraça. Primeiro, porque ninguém precisa de ter estado nas boas graças de outrem para mais tardar se lamentar da inversão de estatuto; pode acontecer a alguém que nunca tenha sentido uma graça como pretensiosa comenda. Segundo, o tira-teimas da ausente relação causal é que quem escorrega para um estado de desgraça não pode esperar que o tempo sobrante seja generoso e, a páginas tantas, alcandorado seja a um estado de graça. Termos em que ele definia um estado de desgraça: não tem remédio que se espere com o andamento do tempo. Ao estado de desgraça, por irremediável que seja, não importa a definitiva e irremissível decadência do ator caído nesse estado.
Há gente que se acomete de padecimentos vários quando se sabe imersa num estado de desgraça. É como se um mergulho numa piscina de lodo viscoso se tratasse e fosse impossível manter-se à tona, as forças submersas e ocultas a puxarem o corpo para o fundo da piscina. Há muita gente que se entristece ao saber-se aquartelada num lugar onde estão os párias, os quase inúteis, os que não merecem crédito nem confiança, os que invariavelmente erram (ou são levados a essa suposição pela sequência de desautorizações de quem o contraria). Ele não figurava no numeroso exército de gorados por causa do estatuto de desgraça pespegado.
O que importava não era o estado de desgraça. Sabia que não era por sua vontade, nem por atos da sua autoria, que o estado de desgraça fora apenso ao seu currículo; fora uma ação exterior, ainda sem putativa explicação, a origem do estado de desgraça que oficialmente, e com não solenidade a condizer, lhe impingiram. Não havia mal nenhum na depreciação assim ditada. A entidade responsável não era cautela de bons pergaminhos. Cair assim em desgraça é um estado de graça.

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