The Gotobeds, “Cold Gold
(LA’s Alright)”, in https://www.youtube.com/watch?v=sASkCmw_ZJ8
Como a ira se serve às colheradas, daquelas
colheres de impantes dimensões. Como essas doses de ira entram à força pelo
corpo dentro, cavalgando no dorso da improfícua resistência que se esboça. Dizem:
parece que o tempo é inútil quando no estaleiro dos sentimentos medra, contra a
vontade do seu hospedeiro, a lança mortífera da ira. Seja permitida uma dissidência:
o estado iracundo é uma consumição que não tem valimento. É a ira, nas suas
imponentes colheradas a frio, que estorva a utilidade do tempo. Ou, por outras
palavras: enquanto permanecer a ira, o sucedâneo de um estado comatoso, é pior
do que uma hibernação: é uma traição à clepsidra particular que pauta o
andamento do tempo, como se o tempo avançasse umas páginas do calendário a
eito.
Dizem, também: todos os males têm remédio,
mesmo os que à partida se julgam irremediáveis. É um dos paradigmas da
impossibilidade dos impossíveis – metendo ao centro da rosa-dos-ventos o faraónico
desejo da possibilidade de tudo (como critério). Por exemplo: combata-se o
estado iracundo através de uma libertação do corpo. Mande-se o corpo para
aquilo que seja concebido como um palco, mesmo que seja fora do habitat natural
dos palcos; pode ser o quarto, a sala, um esconderijo qualquer, se imperar o
pudor e o esconjurar dos demónios que tomaram a alma como colónia tiver de
ficar restrito ao seu fautor.
Que o corpo salte para cima do palco. Que ensaie
as coreografias mais inestéticas. Que o corpo seja deixado a um contorcionismo,
dir-se-ia salutarmente sitiado por um êxtase demiúrgico. Desamarrem-se os
estorvos que impeçam as convulsões necessárias para o corpo se desalinhar dos
maus candeeiros da ira. Se for preciso alguma destruição, ela que seja
avalizada pelos resultados esperados. Pode acontecer que a carne sofra ferimentos
nos preparos em que o corpo se deita, à revelia da vontade que, por o ser, é
domada e não quadra com o movimento lisérgico que se espera do corpo. Que seja
rasgada a roupa. Que sejam desprezados livros que repousam na estante à espera
da morte. Que seja desalfandegada a memória, cerzindo-a com a precisão milimétrica
da memória seletiva, a teriaga para asfixiar a ira que medra.
O suor a rodos é o selo da libertação. O esgotamento
das forças, a caução das forças de sentido oposto que levitam em sua renovação
heurística. Nem que esteja tudo desarranjado e o palco que assim se ofereceu
seja o sinal da decadência. São erráticas as conclusões que se espraiam no
estirador impreparado: não é decadência, é reinvenção. A candeia necessária
para sepultar a ira, que perece no pelotão de fuzilamento da revolução encenada
no palco assim concebido.
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