5.7.17

O guardião dos silêncios


PJ Harvey, “You Said Something”, in https://www.youtube.com/watch?v=HJlmva4oWt8    
Há palavras dolentes, palavras que não merecem ser ditas. Um silêncio hermenêutico. Pois através do silêncio podem falar as palavras necessariamente oprimidas, oprimidas para um bem qualquer. Vegetam silêncios maiores entre a espuma que o mar deposita no areal que bordeja a maré. Vigoram silêncios onde a demanda se enquista no bem maior, a ausência de pleitos. Vistoriado o sangue possivelmente fervente, passada em revista a héctica saudade da impassibilidade, a voz emudece a bem da causa entronizada no altar das prioridades.
Não chega a ser repressão das palavras; apenas sua contenção, o guardar em espaço reservado as que podiam desalfandegar escaramuças que não têm um desaguar convidativo. Se o silêncio medrasse entre os pingos da chuva, uma quimera possível, saber-se-ia que os olhos não decaíam em seu marejar inútil. Os postais devem ser em branco, com a imagem no avesso a fazer as vezes da mensagem. Mesmo que a mensagem seja servil de um sentido opaco: à falta de silêncio que afixe a devida pontuação na gramática das frases que deviam ter ficado por dizer, o calendário não esbraceja diante das palavras improváveis. É uma outra maneira de exercer o silêncio, sem que o silêncio tenha a pura ausência de palavras como húmus.
O exemplo carece de intérprete. O guardião de silêncios, o ator que não se intimida com o eco demorado do silêncio em sentido literal. Sabe que em momentos certos as palavras merecem ficar solteiras, sitiadas pelo solfejo de um silêncio maior. Podem passar cavalos apressados num trovejante galope, aprisionando a atenção das pessoas ao estrepitoso manancial. Nem assim se descompõe o silêncio heurístico. Assiste-se ao momento aparatoso e as razões do desassossego ficam em banho-maria.
Do exemplo matricial sobra a pedagogia do silêncio criteriosamente escolhido. Dirão alguns, com o sangue a aflorar à pele febril, que o silêncio não foi feito para eles. Não se querem estremunhados por um silêncio que julgam contrafeito, um silêncio ensurdecedor que os transfigura na antítese da sua linhagem (boa ou má, para o caso não interessa). Talvez o amanhecer sereno da maturidade seja a caução de que precisam para não serem reféns do sangue fervente. Saberão que o emudecer das palavras contingentes é preferível (e que notem bem, não se usa a depreciativa expressão “é mal menor”) ao seu resfolegar pela pedregosa serrania que acaba com o corpo engastado de cicatrizes.
O alfobre da madurez previne as feridas. É preferível a ter de as curar na forma de cicatrizes.

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