Trentemøller, “Sinus”, in https://www.youtube.com/watch?v=N85IA56qutc
O mar era o pano de fundo. As suas serranias, quando
as ondas se iravam e o navio ondeava ao seu sabor. As suas planícies, quando a
bonança se amparava no navio. As suas noites temperadas pelo luar e o luar
incandescente derramado sobre as águas douradas. Os seus dias soalheiros, intermináveis.
Dir-se-ia que não tinha razões para ter medo do
mar; era o seu habitat. E, todavia, tantas foram as vezes que ouvira dizer “homem ao mar” em referência às suas
quedas involuntárias no regaço do mar, e sem haver ninguém nas proximidades, que
já não sabia por que náufrago era sua condição inata. Seria a propensão para
cair na medida vertical do precipício, sentir um remoinho tomar conta do corpo
enquanto mergulhava nessa verticalidade, como se um amplexo de acupuntura se
apoderasse do corpo, o choque térmico com o mar, o corpo penetrando nas águas à
medida de um torpedo disparado por um submarino, as borbulhas de generosa
dimensão na água por causa do impacto do corpo com o mar. E depois de um torpor
momentâneo, sentir o corpo devolver-se na urgência da superfície, à míngua de
ar e na impossibilidade da apneia.
Tantas vezes fora náufrago e de todas elas
viera à tona com a impressão que não podia, que não queria, voltar a ser náufrago.
De cada vez que experimentou o naufrágio teve medo. Medo: de ser a última vez
que o naufrágio emoldurava o cadastro pessoal. Mas havia sempre uma vez a
seguir, outro naufrágio. A verdade – admitia – é que a cada naufrágio sentia-se
prisioneiro de um paradoxo: o medo e a dor cresciam na exata medida da vontade
de não ter sido o derradeiro naufrágio.
Que fosse sua perceção, todos os naufrágios
tinham sido produto de um ato involuntário, de acasos que se puseram de acordo
para determinar o naufrágio. Mas isso era a sua perceção. Podia estar enganado
e a impressão de se soerguer por cima da máscara dos sentidos não
correspondesse ao factual. Só que ele não estava em condições de dar conta dos
factos que se escondiam na constelação de espelhos de que desabrochava uma miríade
de possibilidades. O entendimento aparecia difuso. A páginas tantas, tinha de
admitir a hipótese de nunca ter sido náufrago. A hipótese de nem sequer ter
sido embarcadiço. Os sonhos são um reino insondável. E quando o onírico é
impossível de decantar, fica por saber onde está a fronteira sobranceira que
limita os sonhos do seu contrário.
Talvez nunca tivesse sido náufrago – o que
explicava o paradoxal ensimesmar que agitava a atração pelo naufrágio. Número
zero: talvez fosse essa a sua condição inata.
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