Iggy Pop, “Lust for Life”
(live at Later with Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=_lJqBsrShys
Enganados estão os que desconfiam da espécie
humana, os que estão sempre a apontar-lhe defeitos, os que não podiam concordam
mais que o “inferno são os outros” (e talvez aceitem, sob proteção de um
segredo, que o inferno começa neles próprios). Enganados estão: à hora do
passamento, e a atestar pelo calibre dos epitáfios e das rememorações condoídas,
todas as pessoas valem a pena. Todas levaram vidas excecionais. Todas são
credoras de panegíricos que passam por cima de qualquer elevada serrania. As
pessoas só merecem elogios numa altura em que já por cá não andam para se
assarapantarem com eles (os elogios). Fica um conforto: não há pessoas más
quando morrem.
A crer no princípio geral do generoso epitáfio,
que se aplica a qualquer fenecido, fica fácil aspergir palavras elogiosas e
prantos de angústia que convocam uma saudade que se consome ainda mal o cadáver
tomou seu arrefecido lugar na urna. Não sei se será propositado e, para dar
vencimento aos que calibram a existência pelo pessimismo antropológico, sejamos
(os que se afidalgam na hora imperativa do epitáfio) tão generosos na palavra
elogiosa, no choro compulsivo e na homenagem hoje praticada em redes sociais,
porque a pessoa louvada deixou de pertencer aos vivos. Não é cinismo. Se for
comparada a produção de elogios em vida com o pródigo epitáfio que parece
obnubilar os episódios que embaraçaram o finado, existe a desproporção significativa
de uma dualidade de critérios. É como se o entretanto falecido mudasse de
personalidade só porque se esvaeceu dos vivos. Aquele morto que jaz no féretro não
há de ser a mesma pessoa que deixou de ter vida para dar lugar ao defunto.
Isto traz consequências para a ciência que dá
lastro à natureza humana. Confirmam-se os bons presságios dos otimistas
antropológicos: não há pessoas más e, em seu contrário, os funerais são a
confirmação de que todas as pessoas (sem exceção) são boas e deve-lhes ser creditada
uma elevada medida de consideração e respeito. Talvez quem procede na ciência
do epitáfio fácil e escorrega para o registo gongórico, passe em revista, às
arrecuas no tempo (ou seja, em antecipação do dito), o seu próprio adeus dos
vivos. Na hora “h”, a espécie humana entrelaça as forças em homenagens aos que
morrem, pois cada um dos seus espécimes sabe que a sua hora funesta há de estar
marcada algures no calendário. Nessa altura, joga-se o deve e haver: quem no
passado se condoeu com a morte alheia tem a vez de ser epitafiado.
Como dizem os otimistas antropológicos, “temos de ser uns para os outros”. Eu
lamento que os elogios sejam gastos quando são inúteis (isto na perspetiva de quem
se excita ao saber-se destinatário de um aplauso multitudinário: deitado na
urna, já não o pode provar).
Sem comentários:
Enviar um comentário