25.7.17

As pessoas valem todas a pena (sobretudo quando estão mortas)


Iggy Pop, “Lust for Life” (live at Later with Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=_lJqBsrShys    
Enganados estão os que desconfiam da espécie humana, os que estão sempre a apontar-lhe defeitos, os que não podiam concordam mais que o “inferno são os outros” (e talvez aceitem, sob proteção de um segredo, que o inferno começa neles próprios). Enganados estão: à hora do passamento, e a atestar pelo calibre dos epitáfios e das rememorações condoídas, todas as pessoas valem a pena. Todas levaram vidas excecionais. Todas são credoras de panegíricos que passam por cima de qualquer elevada serrania. As pessoas só merecem elogios numa altura em que já por cá não andam para se assarapantarem com eles (os elogios). Fica um conforto: não há pessoas más quando morrem.
A crer no princípio geral do generoso epitáfio, que se aplica a qualquer fenecido, fica fácil aspergir palavras elogiosas e prantos de angústia que convocam uma saudade que se consome ainda mal o cadáver tomou seu arrefecido lugar na urna. Não sei se será propositado e, para dar vencimento aos que calibram a existência pelo pessimismo antropológico, sejamos (os que se afidalgam na hora imperativa do epitáfio) tão generosos na palavra elogiosa, no choro compulsivo e na homenagem hoje praticada em redes sociais, porque a pessoa louvada deixou de pertencer aos vivos. Não é cinismo. Se for comparada a produção de elogios em vida com o pródigo epitáfio que parece obnubilar os episódios que embaraçaram o finado, existe a desproporção significativa de uma dualidade de critérios. É como se o entretanto falecido mudasse de personalidade só porque se esvaeceu dos vivos. Aquele morto que jaz no féretro não há de ser a mesma pessoa que deixou de ter vida para dar lugar ao defunto.
Isto traz consequências para a ciência que dá lastro à natureza humana. Confirmam-se os bons presságios dos otimistas antropológicos: não há pessoas más e, em seu contrário, os funerais são a confirmação de que todas as pessoas (sem exceção) são boas e deve-lhes ser creditada uma elevada medida de consideração e respeito. Talvez quem procede na ciência do epitáfio fácil e escorrega para o registo gongórico, passe em revista, às arrecuas no tempo (ou seja, em antecipação do dito), o seu próprio adeus dos vivos. Na hora “h”, a espécie humana entrelaça as forças em homenagens aos que morrem, pois cada um dos seus espécimes sabe que a sua hora funesta há de estar marcada algures no calendário. Nessa altura, joga-se o deve e haver: quem no passado se condoeu com a morte alheia tem a vez de ser epitafiado.
Como dizem os otimistas antropológicos, “temos de ser uns para os outros”. Eu lamento que os elogios sejam gastos quando são inúteis (isto na perspetiva de quem se excita ao saber-se destinatário de um aplauso multitudinário: deitado na urna, já não o pode provar).

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