24.7.17

Ficção científica


Massive Attack & Tricky, “Take It There” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=G8sAcSkP9OA    
A varina subiu ao promontório onde se aquartelavam os mastins da verdade. Julgava que podia impingir peixe datado, ou então tratava-se de uma promessa e no dealbar da peregrinação a velha varina, com dores nos calos de tanto andarilhar com o cabaz encimando a cabeça, nem sabia do desafio que a esperava. É que os mastins da verdade são como os fantasmas (ou como deuses, o que vem quase a dar no mesmo). Deles se diz existirem, têm seguidores capazes de jurá-lo a pés juntos, sem, contudo, alguma vez terem estado diante da sua presença. Pior ainda, que se saiba, os mastins da verdade não gostam de comer peixe.
Talvez a varina ficasse desesperada ao dar conta da impossibilidade em chegar à fala com os mastins da verdade. Trazendo companhia a tiracolo (a dita ajuda psicológica), podia requisitar os bons serviços dos diligentes pajens. Estes não teriam a menor hesitação em confirmar que os mastins da verdade estavam presentes; em espírito, presentes. E se a varina, não satisfeita com o descarregar de responsabilidades da corte, perguntasse como sabiam estarem tais espíritos diante dela, desde a corte diriam, convencidos e sem dúvidas, que se sentia uma certa aura a adejar no vento frio que (e aqui interpelavam os sentidos da varina) causava um arrepio pela coluna vertebral abaixo. Se a exasperação da varina começasse a vir ao de cima, e ela pedisse para os pajens servirem de intermediários com os mastins da verdade (por sua manifesta incapacidade para encetar conversação com meros espíritos imateriais – as varinas sempre misturaram uma fé inabalável com aspetos mais práticos que moderavam a sua religiosidade, exibindo um lado material que não casava com a metafísica de que eram cultoras), os pajens dariam seguimento à sua vontade.
Talvez a varina não entendesse que se estava a pôr nas mãos da corte: ou ela depositava confiança nos pajens (vá lá, quase uma fé, quase tão arreigada como a sua fé tão hesitante), aceitando o que por eles fosse transmitido em nome dos mastins da verdade, ou a varina acabava amordaçada por maus lençóis. Havia sempre a possibilidade de a varina descarregar o vernáculo que era a sua verdadeira especialidade, quando a impaciência se misturasse com as dores do cansaço de uma caminhada a que não estava habituada e de que a idade não era boa conselheira. A varina condenaria os pajens ao degredo, disparando a eito impropérios que fariam corar os deuses e, com certeza, até os mastins da verdade.
A varina cansada, depois de descalçados os socos típicos e de atirar o corpo para um relvado adjacente, teria sempre algum tempo para levantar os pensamentos da desordem. Se nem assim os mastins da verdade conseguissem fazer ecoar os seus murmúrios junto da varina, era mau sinal. Ou a varina estava com a sintonia afinada noutra dimensão, incapaz de captar as ondas hertzianas por onde eram veiculados os murmúrios dos mastins da verdade. Ou a varina estava surda de vez. Ou os mastins da verdade eram um logro.
De regresso a casa, os mordomos que acompanharam a varina na peregrinação fizeram uma paragem técnica na primeira tasca que apareceu. A noite adivinhava-se longa.

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