Massive Attack &
Tricky, “Take It There” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=G8sAcSkP9OA
A varina subiu ao promontório onde se
aquartelavam os mastins da verdade. Julgava que podia impingir peixe datado, ou
então tratava-se de uma promessa e no dealbar da peregrinação a velha varina,
com dores nos calos de tanto andarilhar com o cabaz encimando a cabeça, nem
sabia do desafio que a esperava. É que os mastins da verdade são como os
fantasmas (ou como deuses, o que vem quase a dar no mesmo). Deles se diz
existirem, têm seguidores capazes de jurá-lo a pés juntos, sem, contudo, alguma
vez terem estado diante da sua presença. Pior ainda, que se saiba, os mastins
da verdade não gostam de comer peixe.
Talvez a varina ficasse desesperada ao dar
conta da impossibilidade em chegar à fala com os mastins da verdade. Trazendo
companhia a tiracolo (a dita ajuda psicológica), podia requisitar os bons
serviços dos diligentes pajens. Estes não teriam a menor hesitação em confirmar
que os mastins da verdade estavam presentes; em espírito, presentes. E se a
varina, não satisfeita com o descarregar de responsabilidades da corte,
perguntasse como sabiam estarem tais espíritos diante dela, desde a corte
diriam, convencidos e sem dúvidas, que se sentia uma certa aura a adejar no
vento frio que (e aqui interpelavam os sentidos da varina) causava um arrepio
pela coluna vertebral abaixo. Se a exasperação da varina começasse a vir ao de
cima, e ela pedisse para os pajens servirem de intermediários com os mastins da
verdade (por sua manifesta incapacidade para encetar conversação com meros espíritos
imateriais – as varinas sempre misturaram uma fé inabalável com aspetos mais práticos
que moderavam a sua religiosidade, exibindo um lado material que não casava com
a metafísica de que eram cultoras), os pajens dariam seguimento à sua vontade.
Talvez a varina não entendesse que se estava a
pôr nas mãos da corte: ou ela depositava confiança nos pajens (vá lá, quase uma
fé, quase tão arreigada como a sua fé tão hesitante), aceitando o que por eles
fosse transmitido em nome dos mastins da verdade, ou a varina acabava
amordaçada por maus lençóis. Havia sempre a possibilidade de a varina
descarregar o vernáculo que era a sua verdadeira especialidade, quando a impaciência
se misturasse com as dores do cansaço de uma caminhada a que não estava
habituada e de que a idade não era boa conselheira. A varina condenaria os
pajens ao degredo, disparando a eito impropérios que fariam corar os deuses e,
com certeza, até os mastins da verdade.
A varina cansada, depois de descalçados os
socos típicos e de atirar o corpo para um relvado adjacente, teria sempre algum
tempo para levantar os pensamentos da desordem. Se nem assim os mastins da
verdade conseguissem fazer ecoar os seus murmúrios junto da varina, era mau
sinal. Ou a varina estava com a sintonia afinada noutra dimensão, incapaz de
captar as ondas hertzianas por onde eram veiculados os murmúrios dos mastins da
verdade. Ou a varina estava surda de vez. Ou os mastins da verdade eram um logro.
De regresso a casa, os mordomos que acompanharam
a varina na peregrinação fizeram uma paragem técnica na primeira tasca que apareceu.
A noite adivinhava-se longa.
Sem comentários:
Enviar um comentário