14.7.17

Senescência


Protomartyr, “A Private Understanding”, in https://www.youtube.com/watch?v=yWdLpIITqsQ    
Sentado no banco do jardim, a meio de uma tarde soalheira que mais parecia extraída às profundezas da noite (pois estava deserto, o jardim), o velho encetava um voo picado sobre a memória. Num certo sentido, era como se estivesse imerso numa auto confissão, necessária para limpar do frontispício da memória alguns fragmentos que continuavam a ser baça matéria do tempo presente. Julgava que esse remendo da alma impedia de se desligar de estorvos que pesavam sobre o atual. Enquanto não desse conta desses passos perdidos no pretérito, não estava preparado para a morte.
Os pensamentos sopesavam a arrecadação destinada às memórias, enquanto os olhos se detinham nas mãos enrugadas, nos dedos entrecruzados que escondiam as unhas gastas. A memória distante dos pais, já finados há mais de trinta anos, começou por tomar conta do exercício. Se não fossem as fotografias que estão na sala em molduras colocadas ao acaso, jurava quase não ter lembrança dos seus rostos. Mas lembrava-se da severidade do pai, que contrastava com uma generosidade desarmante quando ele determinava ser altura de atos bondosos. Da mãe, lembrava-se da saúde frágil que não a continha de trabalhar de sol a sol, mostrando sempre um esgar de sofrimento que nunca impediu de fazer o que era esperado. A seletividade da memória dera a graça de quase não guardar recordações das suas mortes, nem da dor sentida a propósito.
À medida que as rugas das mãos se entrelaçavam na justaposição do seu movimento circular, evocou a juventude rebelde, como se fizera ideologicamente revolucionário. Estava na moda, os amigos transitavam pela lógica da insubmissão, o estertor do regime político catalisava o apelo à irreverência. Pintou paredes, participou em reuniões caóticas, fugiu da polícia, ainda apanhou um par de vezes com bastões e pedras perdidos na confusão. Quando o avô materno, general reformado e ortodoxo seguidor do regime, soube dos preparos do neto, chamou-o a casa e instou-o, com uma sobriedade inesperada, a ser sempre ele e a defender aquilo que considerasse justo. Rematou a que foi a última conversa entre os dois, dizendo: “escolhas o que escolheres, serás sempre meu neto. E eu terei orgulho em ti!”.
Esses anos idealistas foram os melhores que teve. Talvez fossem as ilusões a decantar as então improváveis contrariedades, que os anos demenciais da juventude não deixavam tempo de sobra para equacionar. Depois vieram as contingências: a deceção política, com a descoberta da verdadeira cepa dos revolucionários que idolatrara; a orfandade ideológica, mal tomou contacto com os teóricos da revolução e com os seus ideais sanguinários; os desamores; os sobressaltos de saúde; as amizades desfeitas (umas por oposição de feitios, outras pelo esquecimento macerado no tempo); a família sem pergaminhos de o ser (e ele admitia ter sido o principal fautor dos laços emaciados); a solidão. Chegava a estes anos que sabia serem os derradeiros e sentia-se penhor da decadência. Quando olhava ao espelho (o que acontecia com menos frequência), encontrava mais e fundas rugas, os esteios dos olhos descaindo sobre o lado posterior das maçãs do rosto, um aspeto geralmente melancólico, um princípio geral de cansaço, a palidez ensurdecedora. Assumia tudo com intrepidez, o que não acontecera em tentativas anteriores quando, ao ensaiar a hermenêutica da alma, cerceava a função pela metade.
Levantou o rosto. O vento leve descompunha a folhagem das árvores numa coreografia ao acaso. As dores tinham passado. Os arrependimentos não vinham com a lavra de proveito algum. Agora sim, estava pronto.  

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