Protomartyr, “A Private
Understanding”, in https://www.youtube.com/watch?v=yWdLpIITqsQ
Sentado no banco do jardim, a meio de uma tarde
soalheira que mais parecia extraída às profundezas da noite (pois estava deserto,
o jardim), o velho encetava um voo picado sobre a memória. Num certo sentido,
era como se estivesse imerso numa auto confissão, necessária para limpar do frontispício
da memória alguns fragmentos que continuavam a ser baça matéria do tempo
presente. Julgava que esse remendo da alma impedia de se desligar de estorvos que
pesavam sobre o atual. Enquanto não desse conta desses passos perdidos no pretérito,
não estava preparado para a morte.
Os pensamentos sopesavam a arrecadação destinada
às memórias, enquanto os olhos se detinham nas mãos enrugadas, nos dedos
entrecruzados que escondiam as unhas gastas. A memória distante dos pais, já
finados há mais de trinta anos, começou por tomar conta do exercício. Se não
fossem as fotografias que estão na sala em molduras colocadas ao acaso, jurava
quase não ter lembrança dos seus rostos. Mas lembrava-se da severidade do pai,
que contrastava com uma generosidade desarmante quando ele determinava ser
altura de atos bondosos. Da mãe, lembrava-se da saúde frágil que não a continha
de trabalhar de sol a sol, mostrando sempre um esgar de sofrimento que nunca impediu
de fazer o que era esperado. A seletividade da memória dera a graça de quase não
guardar recordações das suas mortes, nem da dor sentida a propósito.
À medida que as rugas das mãos se entrelaçavam na
justaposição do seu movimento circular, evocou a juventude rebelde, como se
fizera ideologicamente revolucionário. Estava na moda, os amigos transitavam pela
lógica da insubmissão, o estertor do regime político catalisava o apelo à irreverência.
Pintou paredes, participou em reuniões caóticas, fugiu da polícia, ainda
apanhou um par de vezes com bastões e pedras perdidos na confusão. Quando o avô
materno, general reformado e ortodoxo seguidor do regime, soube dos preparos do
neto, chamou-o a casa e instou-o, com uma sobriedade inesperada, a ser sempre
ele e a defender aquilo que considerasse justo. Rematou a que foi a última
conversa entre os dois, dizendo: “escolhas
o que escolheres, serás sempre meu neto. E eu terei orgulho em ti!”.
Esses anos idealistas foram os melhores que teve.
Talvez fossem as ilusões a decantar as então improváveis contrariedades, que os
anos demenciais da juventude não deixavam tempo de sobra para equacionar. Depois
vieram as contingências: a deceção política, com a descoberta da verdadeira
cepa dos revolucionários que idolatrara; a orfandade ideológica, mal tomou
contacto com os teóricos da revolução e com os seus ideais sanguinários; os
desamores; os sobressaltos de saúde; as amizades desfeitas (umas por oposição
de feitios, outras pelo esquecimento macerado no tempo); a família sem
pergaminhos de o ser (e ele admitia ter sido o principal fautor dos laços
emaciados); a solidão. Chegava a estes anos que sabia serem os derradeiros e
sentia-se penhor da decadência. Quando olhava ao espelho (o que acontecia com menos
frequência), encontrava mais e fundas rugas, os esteios dos olhos descaindo
sobre o lado posterior das maçãs do rosto, um aspeto geralmente melancólico, um
princípio geral de cansaço, a palidez ensurdecedora. Assumia tudo com intrepidez,
o que não acontecera em tentativas anteriores quando, ao ensaiar a hermenêutica
da alma, cerceava a função pela metade.
Levantou o rosto. O vento leve descompunha a
folhagem das árvores numa coreografia ao acaso. As dores tinham passado. Os
arrependimentos não vinham com a lavra de proveito algum. Agora sim, estava
pronto.
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