New Order, “Age of Consent”,
in https://www.youtube.com/watch?v=8ahU-x-4Gxw
Dez horas. Faltavam dez horas para a hora marcada. Passava o relógio
em revista. De minuto em minuto. Depois, sem esperar pelo circuito inteiro dos
sessenta segundos. Já faltava menos de dez horas, muito menos, e os olhos
estavam em simetria com o relógio. Anestesiados por ele, como se olhos e relógio
fossem um mesmo. O tempo parecia não passar; o relógio parecia ter avariado –
ou era o sono que consumia as ilusões e, prisoneiro de um sonho, estivesse refém
de um tempo emoldurado em sua inércia. Do sonho vinham outras alvíssaras. Não podendo
aferir do vencimento do desafio, e com a pusilanimidade própria dos que se
angustiam com desafios e com a possibilidade de por eles serem derrotados,
enquistou-se nas memórias. Mergulhou nas águas paradas, fétidas, do pretérito. Estava
convencido que o parêntesis no tempo adiaria o desafio e não seria fustigado
pela humilhação do malogro. Já não eram dez horas. Não eram horas nenhumas.
Dez horas. Já eram dez horas. O dia estava
quase no pináculo. Parte desse decálogo de horas é como se não tivesse
existido. Esta é a ilação quando se mede o pulso ao tempo consumido no sono. O
verbo não é por acaso: consumido, como quem diz, gasto. Consumido, ainda, no
sentido de desmatar consumições. Um desperdício, o sequestro dos sentidos. Quem
congeminou a espécie convencionou que os seus intérpretes teriam de dedicar um
número considerável de horas ao sono. Frenético, não se convencia desta fragilidade
antropológica. As horas vertidas no sono eram um travão ao conhecimento. A humanidade
era decididamente pasto da imperfeição. As dez horas eram um sacrílego mostruário
de preguiça, pois mais de metade delas tinham sido evaporadas no sono. Sabia-o
bem. Por mais que se insubordinasse contra a necessidade do sono, era derrotado
pela indolência. Vezes de mais. O tempo devia ser recontado e as horas de sono
subtraídas à medida das vinte e quatro horas.
As dez horas. As horas mais emblemáticas. Alguém
pediu que as inventariasse. Ficou perplexo. Primeiro, por não ser demanda
habitual. Desafios destes costumam contemplar os dez dias mais significativos,
ou os dez momentos que com lugar cativo nas memórias. Julgava empreitada impossível.
A medida do tempo, a medida válida para a consubstanciação das memórias, não é
o hermetismo de uma hora. Segundo, era seu hábito recusar pedidos deste teor. Eram
concursos inúteis. Uma perda absoluta de tempo. Concorriam para a ignomínia do
desperdício de tempo apalavrada a propósito das horas consumidas no sono.
Dez horas. Uma vez fez uma viagem de dez horas.
Não foi a sua viagem maior. Não podia dizer que esteve consecutivamente dez
horas ao volante, pois automóvel nenhum tem autonomia para tanta viagem ininterrupta.
De outra vez, até esteve em viagem sem interrupção por mais de dez horas (uma
viagem de avião entre Madrid e Santiago do Chile). A medida do tempo não é a
objetividade matemática corporizada na tirania de um relógio, ou na tirania das
convenções. Para o relógio, um minuto tem sempre sessenta segundos e os
segundos passam todos à mesma velocidade. Para o relógio interno de uma pessoa,
o tempo tem diferentes diapasões.
Estava convencido que era possível, em assim
querendo, hibernar temporariamente. Desmentindo a tirania do tempo. Talvez esse
fosse o segredo do envelhecimento retardado. E a báscula invisível da
modernidade.
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