Beck, “Chemtrails”, in https://www.youtube.com/watch?v=ghJPtii2DMc
Em novo (devia dizer: “quando era mais novo”, em não me configurando velho no penhor da
idade que tenho), uma vizinha dizia repetidamente, em conversas avulsas com
outras desocupadas vizinhas de que apanhava excertos ao por elas passar, “pela sua saudinha, ó vizinha!” Eu,
habitualmente confuso com a profusão de diminutivos que adulteram as palavras, dava
o desconto à “saudinha” apregoada
pela vizinha.
Mas – primeira objeção – a palavra não existe
no dicionário. É um neologismo com a chancela popular, o quadro vivo de uma semântica
extraída à língua na oralidade e sem lugar na gramática emoldurada pelos peritos
da academia. Segundo, a palavra embebe um vício peculiar da língua oral, que é
o de arranjar diminutivos para todas as palavras. O excesso de diminutivos traz
a tiracolo uma estratégia dir-se-ia típica dos maus vendedores, ao saberem que
o produto que vendem é de fraca qualidade e têm de usar artifícios semânticos
para cobrir as fragilidades da mercadoria e convencer o potencial cliente. Terceiro,
não parece que a hermenêutica anterior venha ao caso quando evoco a vizinha que
estava constantemente a endossar a “saudinha”
das vizinhas outras. Sendo elas septuagenárias para a frente, a prioridade era
a saúde que fraquejava a espaços.
Não é por acaso que, nos votos formulados por
ocasião da dobra de ano, as ouvia desejarem-se umas às outras um bom ano cheio
de saúde (no caso daquela vizinha em particular, “saudinha”, outra vez e sempre). Ou seja: a saúde de outrora, quando
as senhoras ainda passeavam vigor físico, não é a saúde de agora. (Reformulando
a frase anterior: “de então”, pois o
episódio tem a distância de três décadas). Se a saúde já não tem o mesmo viço
do tempo pretérito, e as moléstias se repetem com frequência indesejada, pressagiando
o enfraquecimento do estado geral de saúde, é compreensível que a vizinha
usasse repetidamente o neologismo com popular cunho: “saudinha” – uma saúde sem o fulgor de outrora, uma saúde que, por
fragilizada se encontrar e exposta a doenças dantes desconhecidas, é uma saúde
menor, não é uma saúde de ferro.
(Não tenho a certeza de esta ser a intenção da
vizinha que estava sempre com a “saudinha”
na boca. Podia ser apenas uma superstição – e assim se ensaia alternativa tese:
a senhora levava constantemente a “saudinha”
à boca de cena para exorcizar os fantasmas das doenças.)
Num repente, veio à lembrança a vizinha da “saudinha”, porque às vezes temos a
tentação de escolher um lado da montanha que não é boa conselheira da saúde. Não
sei se será impressão minha, mas se a vizinha ainda fosse viva, hoje dir-me-ia “ó menino, olhe pela sua saudinha.”
(E eu encantado por ainda ser tratado com
aquela deferência, passando por cima do lastro do tempo, entretanto expiado).
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