Nine Inch Nails, “She’s
Gone Away”, in https://www.youtube.com/watch?v=GXc2rPmawek
Depois do casario intenso, das ruas estreitas que
eram a caução dos odores que entravam fundo na pele, chegaram a um lugar que era
uma parede por diante. Se quisessem alternativa, tinham de fazer todo o caminho
de regresso. Decidiram pegar nas esteiras, estendê-las no chão e desabotoar a imaginação.
No dorso da imaginação viria o dístico necessário para matar o tempo que decidiram
arrecadar, a título de parêntesis, antes de empreenderem todo o caminho de
volta.
A parede era de uma alvura surpreendente. Dir-se-ia
caiada há poucos dias, tal a resplandecência que entrava pelos olhos em forma
de suave agressão. Ele sentou-se primeiro, enquanto ela cernia nas imediações a
indagar se a parede não tinha uma escotilha por onde a fuga pudesse ter
vencimento. Ele fixou os olhos na alvenaria. Fixou-se demoradamente nas singularidades
que um olhar atento depurava. De repente, aos seus olhos veio a imagem de um
lago. E da paisagem bucólica, a bordadura do lago. As águas paradas representavam
a tarde serenada, sem vento que se visse. Havia uns nenúfares a boiar,
aleatoriamente espalhados pelo lago. Ao contrário dos lagos retratados nos
filmes, nos postais, no imaginário das pessoas, este lago não tinha cisnes nem
gansos nem patos. Ao tomar conta da orla do lago, mesmo antes de os pés serem
molhados pelo lento resfolegar da água a beijar a terra negra, apreciava peixes
coloridos nadando vagarosamente. A certa altura, um estremecimento inesperado
do vento desarranjou a folhagem das árvores. A água do lago arrepiou-se com o
vento de leste, agitando-se na forma de pequenas ondas, fazendo ouvir o seu
rumorejar.
Ela sentou-se ao seu lado. Notou que estava de
olhos fechados e, todavia, mostrava um ar extasiado, como se algo lépido
tivesse tomado conta dele. Não resistiu e perguntou o motivo de um rosto tão extático.
Ele disse: “Vejo um lago à minha frente.
E não, antes que interpeles a minha demência, não fui por ela tomado de
assalto. Se fechares os olhos, depois de uma viagem demorada nos detalhes da
parede, verás que ao teu olhar vem o lago bucólico que me está a encher as
medidas. Experimenta.”
Fez-lhe a vontade. Fixou um ponto na parede e
dissecou-o, como se o seu olhar se embebesse num microscópio. Quando sentiu que
as porosidades da parede, de tão próximas na anatomização, deixavam de fazer
sentido, fechou os olhos. Variegou o olhar pelos quadrantes que se ofereciam
nos lugares mais próximos. Não veio nenhum lago ao olhar. Interrompeu o silêncio
para dar conta da experiência:
“Fiz como
disseste. Mas não vejo nenhum lago. Vejo, contudo, que esta parede diante da
qual estacionámos é uma conspiração. O olhar tateou a parede e ela esboroou-se
ao menor contacto. Imagina que o olhar tinha a capacidade de uma tremenda
bigorna que consegue implodir construções ostensivas e decadentes. Foi o que
aconteceu quando deitei o olhar ao exercício especulativo. Em vez do lago, a
parede que deixou de o ser. E, antes que perguntes se a tua demência me foi
contagiada, ou se ela tem categoria diferente para apreciar a parede derrubada
em vez do lago que te enche as medidas, dir-te-ei que do lado oculto da parede
está uma vidraça que adeja sobre uma varanda natural, em forma de miradouro. E que,
à frente do miradouro, a imagem é de um imenso vazio. Talvez esteja um nevoeiro
plúmbeo.”
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