31.7.18

Má vida


Underworld & Iggy Pop, “Bells & Circles”, in https://www.youtube.com/watch?v=KmJWD9jQvhc
Ouviu dizer, e como modos depreciativos, que havia a má vida. Incrustado numa concha de ingenuidade, queria saber mais sobre este mau modo de vida. Deitou-se às perguntas que eram o aperitivo das repostas que queria ter em mão (provavelmente para decidir se ia começar a transitar pelos modos da má vida). Fez muitas perguntas a alguma gente – gente toda ela desembaraçada das peias da ingenuidade e, portanto, preparada para desembolsar as respostas sobre os maus modos de vida. Ouviu de tudo. Respostas desassombradas, embebidas em altivez moral. Respostas timoratas, cientes da dificuldade em retratar o questionado num conceito singular. Elaborações do tema, em derivações que apenas têm o condão de evitar a pergunta. Tentativas de sufragar uma visão alternativa do significado de má vida. E até breves ensaios filosóficos sobre o tema. Vamos por partes (e respetivamente, cobrindo todas as hipóteses).
1. A má vida é a promiscuidade, os vícios degradantes que acantonam as pessoas no lodaçal maldito da sociedade. Os que à má vida se entregam são os párias. Uns, provocadores natos, que se abraçam desconsoladamente à má vida só para causarem choque nos demais. Outros são genuínos e não se importam com os juízos de quem os esteja a julgar. Adoram, e genuinamente, os maus vícios que corporizam um certo sentido de má vida. Não quer dizer que vivem mal; têm uma má vida por serem dissidentes dos cânones aceitáveis. São puros sacerdotes da imoralidade vigente.
2. A má vida é volátil. Dirá respeito apenas a quem nela encontra albergue. Não podemos tirar julgamentos finos e reprovar esses comportamentos, porque ficamos expostos à mesma bitola. Por respeito à integridade dos limites dos outros, deixemo-los entregues à sua vontade. E se a vontade quadrar com aquilo que está convencionado como má vida, deixemos que a soberania da vontade esteja preparada para conviver com os deslimites da má vida. A má vida só diz respeito a essa vida.
3. Quem pode ter a ousadia de acusar alguém de má vida? Quais são os parâmetros escolhidos para medir as teias onde se entretecem os meandros da má vida, se quem o faz pode ser exemplo acabado de má vida, todavia assim não reconhecida? Quem se arroga ao direito de julgar outros por má vida, não exibe uma mal disfarçada inveja de não ter a coragem de se atirar aos braços dessa má vida? A má vida é um conceito impossível. Por vício de subjetividade.
4. Má vida, não é o anti uso das convenções. Não são os perigosos caminhos da depravação, das viciantes dependências, do uso abusivo dos outros sem por eles ter o menor cuidado. Má vida é a vida sombria, sonolenta, desprovida de imaginação, rotineira, acanhada, acostumada às convenções sem as sopesar na balança crítica, a vida mesquinha, adulterada pelo imenso tempo gasto a olhar pelos outros de cima a baixo, a vida acomodada, com medo do tempo presente, hipotecada ao gasto pretérito, a vida que se gaseia com a sua constante exaustão por ausência de panorama. A má vida é a autoproclamada boa vida que não se esgueira dos alqueires da comodidade e dos bons padrões que levam os tementes pela esquadria da obediência.
5. Não há conclusões definitivas sobre a má vida. Se alguém é acusado de má vida, não podemos ter esse juízo como absoluto, pois são os outros que tiram as medidas ao comportamento alheio, um padrão ilegítimo. O que conta é saber o sentir interior dos que são acusados de má vida: têm consciência do pulsar tóxico dessa má vida, ou navegam nas suas águas sem qualquer vestígio de remorso? E mesmo os que não admitem o recurso à má vida podem ser eximidos do libelo acusatório? A má vida depende sempre da vida que se deita na almofada que lhe empresta a má conotação. Mas apenas dessa vida.
Ao compulsar as várias hipóteses, ficou confuso. Já não sabia o que era boa vida e má vida. Aprendeu que o melhor remédio é apenas a vida, sem o lastro dos adjetivos.

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