4.1.05

Jet-set, cultura geral

Woody Allen actuou no reveillon do Casino do Estoril. Não, não encenou uma peça de teatro a partir de um dos seus textos. Veio a Portugal integrado na sua banda de jazz, como instrumentista de clarinete. Figura da iconografia cinematográfica norte-americana, cativou a presença de aspirantes ao putativo jet-set doméstico. Muita gente de Lisboa e arredores pagou a fortuna usual para alindar com a sua presença o Casino. Aposto que muitos acreditavam que Woody Allen é uma figura emblemática de Hollywood. Desconhecem que todo o imaginário do autor se centra em Nova Iorque – pequena diferença de uma vasta distância que vai da costa oeste à costa leste do continente americano...

Aposto neste desconhecimento porque a reportagem da RTP apanhou muitos destes figurantes imersos na mais pura ignorância. Quando inquiridos pela jornalista de serviço qual o instrumento que Woody Allen vinha tocar, da dúzia de pessoas abordadas apenas uma jovem soube responder com acerto. De resto, as mais variadas respostas (e não respostas, sinal de uma franqueza que, no meio de tanta insciência, acaba por cair bem). Uns apostaram no saxofone. Sempre é um instrumento de sopro, tal como o clarinete. Para estes duros de ouvido, flautas, saxofones, clarinetes, fagotes, oboés e afins é tudo a mesma coisa. Toca-se com um sopro vindo dos pulmões do artista. Se produzem sons diferentes, se são instrumentos que se diferenciam à vista desarmada, tudo pormenores sem importância – ou apenas importantes para os melómanos.

Um senhor varonil, do alto da sua impecável cabeleira branca, respondeu com a convicção de quem se assenhoreia da verdade: “sexofone” (sic). Ou a pessoa estava apoderada pelos vapores etílicos antes do tempo, ou estamos perante um instrumento novo que só ele conhece. Ensaia-se uma explicação: talvez inquietado pelos fantasmas da andropausa que batem à porta, a boca fugiu-lhe para as suas angústias. O saxofone convertera-se em “sexofone”. Logo de seguida, uma pressurosa dona de casa respondeu com falta de convicção. Disse que Woody Allen vinha tocar um instrumento chamado…jazz! No meio do disparate, este foi o auge.

Adivinho estes aspirantes do jet-set da linha de Cascais, em estremecimento delirante, espumando vaidade, no dia em que por fim apareceram nos ecrãs. Glória efémera, mas glória de uma vida que já valeu a pena ser vivida só por aqueles fugazes instantes de notoriedade mediática. Não hão-de sair do anonimato, decerto. Nem sequer lhes interessa a fraca figura que fizeram perante a audiência. Aliás, talvez nem sequer cheguem a ter consciência da agnosia que destilaram em público. Mesmo os que desconfiam que a jornalista emprestou à reportagem uma dose de cinismo indisfarçável terão a apetência para fazer de conta que isso não interessa. Apareceram, mostraram-se como figuras dignas de pagar mais de 500 euros para passar o fim do ano no Casino do Estoril. Viram Woody Allen a tocar uma coisa esquisita, com um nome quase impronunciável. Isso é que conta. O resto fica por conta da inveja de quem não pôde lá estar, e muito menos desfilar perante o país.

O que dizer perante tamanha manifestação de grotesca ingorância? O que dizer de pessoas que se fazem passar por entendidas de um espectáculo que pagaram para ver, afinal desconhecendo alguns dos aspectos mais importantes desse espectáculo? À incultura junta-se a incapacidade para encontrar a informação. Se esta gente fosse capaz de detectar os sinais de burrice que os preenchem no interior da sua vacuidade, teriam ao menos a humildade de gastar uns minutos – uns parcos minutos – para encontrar a informação que evitava as tristes figuras que fizeram.

Não é de estranhar. Quem tudo dá, a mais não é obrigado. As frugais capacidades impedem o discernimento, o espírito humilde ausenta-se e evita nada dizer quando não se sabe dar resposta à pergunta colocada. Ainda que do mais fundo viesse à superfície um vestígio de inteligência, a espessa laca dos penteados das senhoras e as doses industriais de gel na cabeleira dos cavalheiros impedia que inteligência se soltasse cá para fora.

Quando vi esta reportagem não consegui reprimir umas sonoras gargalhadas. E apeteceu-me, naquele instante – mas só naquele instante – ser comunista…

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