Estamos sempre a aprender. Todos os dias. Se estivermos atentos às notícias, damos conta que a comunicação social é cada vez a antítese da pedagogia da informação. Último episódio: os gatos portugueses têm um desempenho exemplar nos concursos internacionais. Nas exposições que tecem loas à beleza dos gatos, os exemplares lusitanos portam-se com garbo, não envergonhando a bandeira da cruz armilar.
Deduz-se, portanto, que os gatos não escapam ao estigma da nacionalidade. Os gatos portugueses são diferentes dos espanhóis, dos gregos, dos paquistaneses, dos japoneses e dos chilenos. Todos os gatos terão a sua identidade própria consoante o local onde nasceram e onde foram criados. Um pouco como os humanos: neles é possível encontrar idiossincrasias da nacionalidade. Indo mais longe, é fácil detectar identidades individuais alteradas pelo fenómeno da socialização. É o que acontece com emigrantes que se enraízam na comunidade de acolhimento. Ao fim de alguns anos, moldam-se aos traços identitários do local para onde emigraram. Recebem essas influências, bebem inspiração nas pessoas que passam a ser o seu entorno, aculturam-se.
Desconhecia que este fenómeno atinge os gatos. O que me deixa perplexo é saber que há pessoas que vão no engodo dos jornalistas patrioteiros que não se cansam de enaltecer as virtudes da portugalidade. Que o façam em relação aos patrícios que por aqui habitam, e que fazem o país que somos, ainda se entende. A auto-estima começa-se a construir dentro de cada um. Este aspecto é mais importante em tempos de crise de confiança, em que um país mergulha no divã do psiquiatra em busca de um sentido que levante a auto-estima. Estranho é o exercício que estende a façanha aos gatos. É como afiançar que os gatos lusitanos são nostálgicos, tristonhos, abúlicos, com tendência para caírem em extremos (vai um passo só da euforia ao pessimismo), empenhados em passar ao lado do essencial para se concentrarem apenas no acessório, adiando o futuro.
Quem sabe se a necessidade de elogiar as façanhas dos gatos portugueses é a ilustração da auto-comiseração em que caímos nem se sabe bem há quanto tempo. Na ausência de feitos humanos que permitam engomar o brio nacional, agarram-se as oportunidades encontradas de forma aleatória. Hoje a notícia era sobre os gatos nacionais, amanhã pode ser de cavalos, depois de amanhã sobre as características brilhantes dos porquinhos-da-índia criados entre portas. Ao que parece, a genética dos bichos é susceptível de modificação por influência do ambiente envolvente. As idiossincrasias nacionais estendem-se à maneira de ser dos animais, subvertendo a genética que, pensava-se, era o factor preponderante em animais irracionais. Mas, como avisava no início deste texto, estamos a aprender todos os dias. Nem que seja com os maiores disparates de que há notícia.
São estas as manifestações de nacionalismo primário. Emergem em exibições de garbo patriótico, como se fosse necessário fazer a distinção entre nós e os outros, os que habitam para lá das fronteiras que nos delimitam do estrangeiro. Há meses foi a histeria das bandeiras, que durante umas semanas elevou a vaidade nacional ao máximo expoente desde que tenho recordações da existência. Depois do episódio, a letargia instalou-se de novo. Corporizando o que afinal somos: gente de brandos costumes que vai de um extremo ao outro enquanto se consome um breve instante. Tanto zurzimos uns nos outros, tanto achamos que somos do pior à face do planeta, como no momento seguinte temos disponibilidade para descobrir que “somos os melhores do mundo”.
O brio de quem não se cansa de enfatizar os feitos patrióticos é coisa patética. A derradeira demonstração: a notícia de um rapaz que esteve três semanas desaparecido após o maremoto, algures na Indonésia. Conseguiu sobreviver, por milagre. Como envergava uma camisola da selecção nacional, logo houve quem fizesse disso o principal foco da notícia. Dando a entender que o milagre se consumou porque o feliz rapaz tinha consigo a camisola da “selecção de todos nós”. Estes arautos do patriotismo caseiro não enxergam o ridículo que toma conta deles. São patrioteiros foleiros.
Está-se mesmo a ver: a especial protecção divina estava na camisola vermelha e verde que o rapaz vestia. Afinal deus não é brasileiro: parece que é português!
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