28.1.05

Um Alentejo de morte

Ainda a fúria dos elementos, na sua descontrolada natureza. Imagens de animais mortos, derrubados pela míngua de água. Emprestam à paisagem alentejana o odor pestilento da morte. Ovelhas sacrificadas por uma seca invernal que, dizem os entendidos, já há muito não se via. As rezes espalham-se, inertes, olhos esbugalhados, corpos enrijecidos, mirradas pela água que o céu se recusa a ofertar. A planície acobreada fora de tempo (porque é essa a cor habitual em tempos de estio) tinge-se com a cor negra dos animais que vão diminuindo o rebanho, perdidas as suas vidas.

O Alentejo entristece-se, e entristece-me. Não sou daqueles que tecem loas à paisagem alentejana. Há quem cante as linhas curvilíneas das planícies alentejanas, com as cores suaves que se sucedem com a passagem de testemunho entre as estações. Ensaiam-se cantos que enaltecem o voo majestoso da miríade de aves que por ali habitam. É no Alentejo que abundam os ninhos de cegonhas, enfeitando os topos de chaminés, de postes de electricidade, e do que mais aprouver às pernaltas aves desde que seja lugar cimeiro.

Concedo: há alguma beleza nas paragens alentejanas. Mas não uma beleza que se compare com paisagens mais a norte, com as agrestes montanhas de Trás-os-Montes, com a sucessão de montanhas que ilustram uma paisagem rude que teve que ser dominada pelo homem. Nem com o verde embriagante do Minho, comparado por alguns às paisagens arrebatadoras da Irlanda. Por estes dias em que a agressão dos elementos se faz notar, qualquer beleza que reste é toldada pelo ambiente de morte que se embebe nas imagens doídas de rezes espalhadas pelo chão. Sinónimo da inclemência dos elementos, que ceifam a vida onde ela não está preparada para lidar com os seus cruéis efeitos.

Mais a norte, notícias do frio impiedoso trazem imagens do gado sem pasto, sem água para se dessedentar. A água petrificada nos pequenos cursos testemunha as preocupações dos criadores de gado. Clamam por auxílios, quem sabe se por uma ajuda divina que traga a chuva tão desejada. Desesperam com os dias consecutivos de sol que acompanha o frio cortante que congela a pouca água que podia saciar a sede dos animais.

O desarranjo da natureza grita desde as profundezas. A cada ano que passa, as estações trazem excessos: ou Invernos com abundância de água, com cheias que ensopam os terrenos e são um manto de destruição; ou invernias no outro extremo, o da secura, que deixa as terras exangues de água e espalham a morte entre os animais. Dizem que são os humanos os responsáveis pela loucura dos elementos da natureza. Que é a ânsia do lucro fácil que nos empurra para a delapidação dos recursos, a práticas que vão degradando o ambiente. Que depois se vinga, através das alterações climáticas que nos apanham desprevenidos. Os fundamentalistas do ambiente sentenciam com prontidão: é o preço do progresso, a factura da afogueada cegueira do homem dominado pelo maldito capitalismo.

É pena que estas brilhantes sentenças não consigam de trazer de novo à vida os incautos animais cercados pela armadilha da seca. Agora compreendo melhor como é fácil, mas ineficaz, ser arauto da desgraça. Apontar a dedo os excessos do Homem como culpados pelos deslizes da natureza só de quem é tributário do ambiente como valor supremo. Como se o Homem tivesse que estar ao serviço do ambiente. Como se as inclemências da meteorologia fossem o produto imediato dos desmandos humanos – ou como se o humano pudesse ordenar aos elementos da natureza comportamentos condizentes com a ausência de desgraças.

Discussões estéreis. Marcam-me mais as imagens dolorosas de animais inocentes que foram consumindo as forças à medida que não encontravam gota de água para se saciarem. A elegia da morte nas imagens dos cadáveres das rezes espalhados pela planície alentejana ultrapassa tudo o mais que seja discutido, todas as culpas que alguns homens queiram atirar a outros homens, mais as defesas que estes tentem encontrar. Os pobres animais não são achados nestas discussões que perdem o seu sentido. E são eles as primeiras vítimas.

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