3.1.05

Os prazeres da cozinha

É engraçado: por vezes temos que estar longe das coisas para lhes dar mais valor. Sempre gostei de me entreter na cozinha, entre tachos e condimentos. Em tempos frequentava os prazeres da cozinha com mais assiduidade. Ultimamente tenho andado relapso. Ou por preguiça, ou por cansaço, ou porque não tem havido a oportunidade para deixar o tempo correr entre os cheiros libertados pelos cozinhados. O que é estranho, para quem sempre teve na cozinha uma válvula de escape, em especial naqueles momentos avassaladores de trabalho em que a cozinha é um refúgio para a tranquilidade de espírito.

É verdade que é diferente ir para a cozinha por necessidade ou por ócio. Confeccionar almoços e jantares em dias sucessivos não transporta o aprazimento da cozinha. Porque a rotina se instala, porque chega o momento em que é difícil puxar pela imaginação para solucionar o dilema do que há-de ser cozinhado no momento. Tonificante é estacionar na cozinha sem receio de perder o rasto do tempo.

O verdadeiro prazer está nos jantares em que se reúne a família ou os amigos. Jantares com um cardápio composto: entradas, prato principal e sobremesas. Todo um ritual bem medido, uma sequência de actos em que os comensais fruem do convívio, dos deleites da amizade, com a inestimável ajuda dos garfos que levam as iguarias a aconchegar o estômago – de preferência com um vinho tinto bem escolhido. Tentar decifrar a torrente de sabores que se combinam num prato é o acto final das horas gastas na cozinha a desemaranhar os segredos do resultado final que aparece nos pratos de quem se senta à mesa. Para mim o verdadeiro prazer está nesse interlúdio, mais do que na consumação do acto.

O deleite está mais ainda naqueles momentos em que a imaginação ensaia novas experiências gastronómicas. Às vezes o resultado não é apetecível. Mas quando a recompensa vem na forma de um produto bem acabado, sinto o gosto interior de ter posto a imaginação ao serviço das artes culinárias. Quer se trate de adaptações de receitas já conhecidas, que por vezes dão resultados interessantes, quer se trate de misturar os ingredientes sem que antes se tenha experimentado algo de semelhante, o cerimonial de escolher os ingredientes e de os combinar em proporções adequadas é o grande desafio, o mistério por desvendar que a cozinha oferece.

Este exercício estimula os paladares. Os gustativos e os da alma, que são requentados quando o estágio na cozinha é acrescentado de uma companhia de quem partilha o mesmo gosto pelas artes culinárias. É aqui que a obra colectiva faz sentido. Os artífices dão, à sua maneira, um contributo que se congemina no resultado final. As diferentes percepções dos sabores, as diferentes experiências gastronómicas – tudo conflui numa iguaria enriquecida pelo dom construtivo de pessoas diferentes. Nunca tive a experiência de estar na cozinha com estrangeiros, mas é um desafio apelativo. A diversidade cultural, produto de diferentes enquadramentos nacionais, seria um dado para enriquecer uma obra gastronómica colectiva. Basta recordar as iguarias que resultam de diferentes cruzamentos civilizacionais: a cozinha crioula, nos países onde se misturam as influências nativas com o toque dos civilizadores europeus, por exemplo.

É interessante ver como se consome o afluxo de energias que leva ao produto final. Uma libertação da imaginação pessoal, um contributo vindo do interior que vai percorrendo o espaço entre a escolha dos ingredientes, a sua manipulação, a confecção que culmina no preparado final. Os prazeres concentram-se nessa fase. Assim que a iguaria fica pronta a ser desbastada pelos talheres dos comensais, o prazer esvai-se na exacta proporção do que ficou para trás, do prolongado interlúdio que consumiu os verdadeiros prazeres da alma. As delícias da gula não são prioridade. Apenas a curiosidade de tragar o produto final para examinar a proficiência do orquestrante dos ingredientes, avaliar a sapiência que a imaginação momentânea facultou.

É a curva descendente dos prazeres gastronómicos. Exangue pelo acto de criação, não sou convocado ao deleite gustativo que convida ao consumo ávido do que foi confeccionado. Aí uma boa mesa não é feita pelo cardápio que a preenche. É feita pelo prazer de conviver com quem se senta à mesa, com o lânguido correr do tempo em que a conversa percorre os instantes do tempo como se os prolongasse para além do intemporal. Saber que se prepara um jantar para atingir este resultado é o maior prazer que a cozinha pode legar. Afinal, dois prazeres num só.

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