21.1.05

Recordações de um advogado que nunca o chegou a ser

Os advogados são uma marca de água sempre presente diante dos nossos olhos. Não há semana em que não deixem a sua peugada. Voltaram a emergir com o início do julgamento do processo Casa Pia. A cada sessão que se passa, mais e mais entrevistas aos advogados, que soltam a palavra arrevesada em que são férteis. Junta-se o ambiente típico da campanha eleitoral: os advogados são peças proeminentes entre a classe política. A trindade que me leva hoje a vasculhar no baú das recordações completa-se com uma reportagem publicada na revista Focus sobre os escritórios de advogados mais famosos e milionários.

Por acidente cursei direito. À custa de muitos sacrifícios, nunca deixei nenhuma disciplina atrasada. Sempre senti que o direito não era a minha vocação. Mas como não sabia qual era a alternativa, fui fazendo o meu percurso dentro do direito. Sempre era melhor ter alguma coisa na mão do que sair do curso de direito em troca do desconhecido. Os cinco anos do curso sucederam-se sem que descobrisse a tal vocação. O direito era um corpo estranho, um estorvo ao intelecto.

Completado o curso, a indefinição manteve-se: com o canudo entre mãos, o que fazer dele? Resposta: o estágio de advocacia. É, aliás, a reacção óbvia dos leigos que olham para os licenciados em direito: que tem esta licenciatura é advogado. Uma e outra coisa confundem-se numa só. À falta de opções, embarquei na aventura que durou ano e meio. Encontrado um advogado que me recebesse como estagiário, iniciei-me nas lides. Acompanhei-o em julgamentos, mergulhei nos processos que ele tinha entre mãos, tentei inteirar-me das manobras processuais e das tácticas que são o caminho para o sucesso que traz mais clientela. Ao fim de dezoito meses, apenas a convicção reforçada de que não tinha nascido para ser advogado. Já sabia que se exige uma vocação especial para interiorizar o raciocínio jurídico. Mas a vocação é ainda mais acentuada para quem deseja ser advogado. Cheguei ao final do estágio e descobri um curioso paralelismo vocacional: para ser advogado é fundamental possuir-se a vocação, tal como sucede com os padres.

Não bastava a ausência de vocação para me afastar do mundo da advocacia. Pior foi a têmpera dos profissionais que enxameiam a actividade. Foi o repositório de artimanhas e falcatruas que me afastou da profissão. Sabia que a ausência de vocação podia ser colmatada com esforço e alguma capacidade. Inultrapassável era o clima de mesquinhez que abunda entre os advogados. Senti que os meios, todos os meios, justificam os fins. Fui testemunha das manobras mais aviltantes só para fazer boa figura junto dos clientes que lhes dão o sustento, ainda que essas manobras tivessem como preço a quebra de solidariedade com os seus pares. Assisti à desfaçatez com que compromissos assumidos eram esquecidos em tribunal. Pelo muito que me foi dado a ver, fiquei com a impressão que no selvático mundo da advocacia vale tudo, mesmo tirar olhos.

A hipocrisia era a nota dominante nas relações entre advogados. Cheios de salamaleques (quando dois advogados se abeiram de uma porta, é um espectáculo ver as deferências em que se desfazem para saber quem passa primeiro), bazófia quanto baste, intimidades cultivadas que, à porta do tribunal, eram substituídas por um sentimento odioso que fazia do advogado adversário um inimigo a abater com todas as armas – as mais impensáveis que alguma vez podia imaginar. Pude verificar que as tácticas desleais aumentavam em função da menor idade dos causídicos. Os advogados mais velhos eram cultores de um sentimento de lealdade, tinham mais respeito pelos deveres éticos da profissão e do relacionamento pessoal. Os mais novos – e quanto mais novos, pior – faziam tábua rasa destes esteios da dignidade pessoal. A única certeza que se podia ter é que não se podia contar com nada, devido ao arsenal de manobras de esperteza saloia que vinham ao de cima.

Passaram mais de dez anos desde que terminei o estágio e imediatamente suspendi a inscrição na Ordem dos Advogados. Quando regresso ao escritório onde estagiei, o advogado queixa-se que as coisas estão ainda piores do que “no meu tempo”. O tempo vai passando e os advogados mais velhos, aqueles que ainda respeitavam alguma nobreza da profissão, vão passando à reforma.

Olho para trás e não me arrependo da opção. Algumas pessoas dizem-me que talvez esteja errado, que hoje estaria a ganhar mais dinheiro. Mas, lá está, o dinheiro não é tudo na vida. Até é possível que essa profecia se cumprisse. À custa do meu bem-estar interior, da minha sanidade mental. Era um custo muito elevado a pagar. Em vez disso, é preferível empobrecer alegremente como professor universitário.

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