13.1.05

Toxicodependência

Acordei assaltado por imagens de toxicodependência. Nunca fui consumidor de drogas. Mas já lidei de perto com elas. Não tão de perto quando fui testemunha de experiências de desconhecidos, mais de perto quando elas tiveram convivência com pessoas amigas. De uma forma ou de outra, guardo imagens que resguardam uma violência sem rosto que se esconde atrás da toxicodependência.

De repente vêm à memória os tempos da adolescência, quando alguns dos meus amigos foram pela aventura das substâncias proibidas. Pé ante pé, primeiro com o haxixe, depois com a heroína que os levou para um sofrimento arrepiante. Lembro-me de ter estado mesmo ali, ao lado da droga, e de ter resistido à tentação. Sem falsos moralismos, sem querer ser um asceta que viu os charros passar de mão em mão e sempre recusou os convites para a experiência. Não há neste estoicismo nada de heróico. Apenas uma opção pessoal, tão subjectiva como a opção tomada pelos amigos que embarcaram na alucinação trazida pelas drogas. É que nisto das opções pessoais, os moralismos são a última pedra que se deve atirar ao ar. No subjectivismo das opções, é sempre fácil criticar as dos outros. Nem que seja para obliterarmos os nossos próprios pecadilhos.

É por isso que me furto a apreciações dos outros, dos que enveredaram pelos caminhos das drogas. Apenas faço uma retrospectiva das imagens doídas trazidas pela desorientação de quem está acorrentado às drogas. Custou-me ver amigos a irem ao fundo, quando a ousadia os fez passar a linha de fronteira das drogas duras. Como se foram degradando, dia atrás de dia, na busca aflitiva da dose diária que injectavam nas suas veias cada vez mais corroídas pela acidez da heroína misturada com os limões roubados de quintais vizinhos.

A escalada vertiginosa elevou a fasquia: para consumirem, traficavam. Com a polícia sempre a pairar, a sobrevivência era uma aventura. Soube de visitas à cadeia, algumas temporárias, outras mais prolongadas. Soube de um colega do 9º ano que perdeu a vida numa refrega motivada por questões de droga. O Joca deixara o mundo dos vivos novo demais. Pela primeira vez, confrontado com a morte de alguém que tinha a minha idade. Novo, novo de mais para o choque da notícia (pouco mais de vinte anos). Coisa menor, simples desvario, quando comparado com o execrável fado que bateu à porta do Joca.

Uma vez, acabado de sair da universidade e passando pelo tirocínio da advocacia, estava de plantão no tribunal de instrução criminal. É aqui que são interrogadas as pessoas que aparecem perante a justiça como suspeitas de delitos. Os vários delinquentes que me caíram em sorte eram, por sistema, acusados de furto. O juiz já sabia a ladainha. As perguntas soltavam-se, mecânicas:

- Porque roubou?

- Para consumo de droga, resposta também ela maquinal, sincera.

- Que droga consome?

- Heroína, disparavam do outro lado, cabeça baixa, num misto de vergonha e de lamento por terem caído nas malhas da justiça.

O juiz tinha que o comprovar. Exigia as mangas arregaçadas, para ver com os seus olhos as marcas cifradas de incontáveis injecções de heroína. Um espectáculo aviltante, ver aqueles braços chagados, ambos os braços, com pouco espaço mais para picar as doses da suficiência diária, do alívio que lhes trazia.

Outra vez, na baixa da cidade, tirava as medidas para um fato. No atelier virado para as traseiras a loja era vizinha de uma parte lateral da estação de S. Bento. Ali à frente, estacionado o espectáculo à luz do dia. Meia dúzia de farrapos humanos injectavam-se onde podiam, onde o vício ainda não tinha carcomido as veias. Poucos o faziam nas veias que ficam descobertas quando se estende o braço. Um espetava-se nas veias da mão enquanto conversava animadamente com um parceiro. Este teve que procurar uma veia disponível no tornozelo. Imagens que ficaram retratadas, um prolongado património de sofrimento misturado com o prazer viciante de anos de consumo.

Foi há dez anos. Hoje pergunto-me: quantos deles estarão ainda vivos para contar?

1 comentário:

Isabel disse...

olá o teu texto chamou-me a atenção eu tambem nunca consumi drogas, mas tambem vivo com ela bem de perto! entendo perfeita mente!
é triste mas é verdade!