Não receies o medo. Das trevas não se desprende o odor pestilento que te faz recuar. Desconheces o que te espera nas esquinas da vida que desfilam à tua frente. E, no entanto, precedes a acção com as hesitações que te fazem temeroso. Recusas arriscar. Receando que na volta tenhas que lutar contra monstros que se acastelam, ameaçadores, na linha do horizonte.
Não receies o medo. Os castelos de sombras são isso mesmo – sombras, que perfuradas se perdem numa espessura não existente. Olhas em redor e sentes a ambição que lateja nas veias de quem se passeia. Paras diante de almas que se refugiam de si mesmas em recônditas quimeras. Ambições que não chegam, tectos altos demais para alcançar. Ambições que se confundem com sonhos. Irradiações de quem olha para além do que a vista alcança. Diagnóstico do risco sem medida. E da teia que não cerceia a ambição – não olhar a meios, atingir os fins a qualquer custo. Manifesta-se um estranho incómodo: não te sentes ambientado a esta perfídia.
Não te confundas. Em nada esta percepção te faça desviar das metas que estão à tua mão. Dos afectos, das pessoas, das realizações mais pessoais, de pequenas coisas que de inúteis têm tanta importância para ti. É esse o teu mundo. És tu que o edificas, que lanças as sementes donde jorra a sua vitalidade. De justificações não careces. Apenas de te sentires em harmonia.
Tens que combater o medo que te deixa lívido perante desafios. Ultrapassar o dilema: crente nas tuas possibilidades, céptico de que o futuro também foi esboçado para ti. Desemaranha-se o paradoxo. Porque não dás valor ao passado, mas perdes-te nos ínvios caminhos do porvir com que te recusas reconciliar. Teimas em ser alguém adiado. Escondes-te detrás da tua ausência, como se ela fosse o melhor caminho para te voltares a reencontrar. Uma ilusória veia circular: partir em busca da harmonia para descobrir, no regresso, que o destino é a casa da partida.
O labirinto é indecifrável. Mas sabes que a solução não está fora de ti. Insistes em desculpar a tua inércia com culpas alheias, como se não fosses juiz das tuas próprias ausências. Na cortina de fumo que oblitera as tuas fraquezas, rodeias-te de penumbras que só tu consegues idealizar. São estes os algozes do teu devir. Só tu podes ser o seu carrasco. Cravar um punhal afiado sem receio da dor que lhes vais provocar – ainda que parte da dor te seja infligida num primeiro momento. Um passo indelével, mas custoso. Essa singeleza é parte da complexidade que irmana os obstáculos do medo.
No fundo, receias ter medo de ser. De ser o que és. Temes enfrentar um Bojador necessário para, então, cresceres com o tempo que não queres perder entre os dedos. A imagem do tempo que se consome com a voracidade dos dias correntes é o espelho dos temores que te aprisionam. Quando aprenderes a conviver com o tempo que se esvai, dia após dia, terás marcado encontro com a reconciliação de ti mesmo.
Até lá, aprender a dissipar as dúvidas da existência como se elas fossem um diabólico cutelo que paira, ubíquo, sobre a tua cabeça. Desconheces que o cutelo não oscila sozinho sobre ti. Sem dares conta, um braço retráctil báscula com a ameaça que te amedronta. Só falta teres consciência que, na dormência dos pavores, és tu que comandas esse braço que julgas indomável e que te impede de seres plenitude.
Não receies o medo. Porque ter medo do que amedronta é o veículo da redenção. O segredo é mudar o sentido dos medos. Quando eles deixarem de pesar como nuvens de chumbo que anunciam a tormenta violenta dos sentidos, deixarão de ser medos. Então será fácil deixar de recear o medo. Estarás preparado para cumprir o desígnio. Espaventar os medos que te consomem e adiam a tua essência ímpar. Aprenderás então que não compensa fugires de ti mesmo, uma vez derrotados os medos.
1 comentário:
Fantástico!
Pode aplicar-se a todos nós, mas a mim soa a uma conversa interior. Tu e o teu eu.
Para mim, este texto está no top 5 dos teus textos.
Parece-me que há aí um vulcão prestes a entrar em erupção.
Cá estarei ao teu lado! Seja qual for o sentido da erupção.
Ponte Vasco da Gama
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