10.1.05

Um coro de abjecções (a teimosia em mostrar a desgraça nas terras atingidas pelo maremoto)

Já lá vão duas semanas. E todos os dias novas imagens retratam a tragédia nas zonas afectadas pelo maremoto. As mais mediáticas mostram a enxurrada de água salgada que tragou tudo o que se encontrava à sua frente. Do fim-de-semana vêm imagens de uma estirpe diferente. Imagens captadas algures (não me recordo se no Sri Lanka ou na Indonésia), horas depois do maremoto.

Nestas imagens somos testemunhas dos despojos da tragédia. De como tudo ficou arrasado. De como a devastação se misturava com os cadáveres espalhados de forma aleatória. E, mais pungente ainda, do desespero com que os sobreviventes procuravam os familiares desaparecidos. Do drama dilacerante nos casos em que as pessoas que conseguiram escapar com vida descobriam que um ente querido jazia, vida ceifada pelas águas vingativas.

Isto mereceu honra de abertura de um noticiário. Duas semanas após a tragédia, os órgãos de comunicação social insistem em mostrar mais desgraça. Comportam-se como o abutre que vagueia, vigilante, sobre a carcaça de um animal que pereceu, esperando que ela arrefeça para a debicar de forma animalesca. Este comportamento é de uma atrocidade ímpar. Confirmando que a comunicação social vem ao encontro do povo que somos, ávido de desgraça, sequioso de partilhar a adversidade alheia, sobretudo nos aspectos sanguinários que ela tem. Diria que tudo se apazigua: um povo e uma comunicação social com tendências necrófagas.

Os mais condescendentes dirão que estas imagens são o passaporte necessário para a solidariedade exigida para com as vítimas do cataclismo. Sem elas as consciências continuariam semi-adormecidas. As imagens com as lágrimas de desespero de pessoas já causticadas por uma pobreza extrema são a razão poderosa que conduzem à condoída solidariedade. São imagens chocantes, o gatilho dessa solidariedade que cresce para ultrapassar a dimensão gigantesca das vagas alterosas que varreram vidas sem conta no sul da Ásia.

Discordo do diagnóstico. É um incrível voyeurismo que invade o país, que nos faz juiz das vidas alheias. E que, nos momentos de desgraça, nos leva a espreitar com uma curiosidade mórbida para a desdita dos outros. Faz lembrar os acidentes de automóvel com que nos cruzamos, as filas que se formam, a curiosidade que leva alguns a parar para dar uma espreitadela ao espectáculo macabro da chapa retorcida, da chapa ensanguentada. Estas pessoas querem ser testemunhas do acidente, querem cheirar o odor do sangue vertido sobre o asfalto. Gostaria de perceber o que as leva a partilhar momentos tão trágicos. Gostaria de adivinhar o sentimento que as percorre por dentro nas horas que se seguem à observação de imagens tão dilacerantes.

Talvez isto explique algumas idiossincrasias nacionais. A tourada, com o sangue a jorrar abundantemente do dorso do infeliz touro. Os pratos da gastronomia nativa que têm doses industriais de sangue como ingrediente (sarrabulhos, arroz de frango, lampreia, morcelas). Aposto que se os Institutos de Medicina Legal abrissem cursos livres para a população eles seriam um sucesso. Nada melhor do que dissecar cadáveres até à exaustão para um povo ávido de sangue. Ou talvez não: porque afinal dos cadáveres que jazem há longas horas à espera de autópsia já não verte gota de sangue.

Assim continuamos com uma comunicação social que se empenha em ser a antítese da pedagogia das massas. Pelo contrário, ela é “educada” pelas massas. É uma comunicação social que se afasta das elites e aproxima do povo chão, num esforço de “democratização” que leva ao nivelamento por bitolas inferiores. Numa perigosa deriva: quanto mais o povinho sente que a imprensa vai ao encontro das suas preferências, maiores serão as exigências para descer o nível, ao nível do abastardamento total. O que virá a seguir: filmar os pormenores de funerais, com câmaras que dão os pormenores da preparação de uma urna?

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