Com alarme, o frio tomou conta dos dias que correm. Anuncia-se uma vaga polar, as pessoas são avisadas que os termómetros vão visitar escalas negativas. As pessoas acantonam-se dentro dos seus agasalhos. Escondem a boca nos cachecóis que refugiam a pele delicada dos lábios do frio cortante. Não escondem o desconforto. E receiam que correntes de ar gélidas assaltem os pulmões, que os temidos vírus tragam um estado febril que derrota a actividade quotidiana.
Mas o frio tem a sua beleza. Por estes dias em que o mercúrio desce para próximo de temperaturas negativas, parece que o ar entra mais límpido nos pulmões. Diria que o frio varre as impurezas que a poluição traz para a atmosfera. Diria que o ar fica mais leve, com a leveza que se condensa nas golfadas que se soltam da respiração, tingindo o ar com a pequena nuvem libertada pelo ar que expelimos.
Nestes dias de frio empurrado das longínquas paragens polares, apetece recuar no tempo em que fazia as viagens matinais para o trabalho, em direcção ao litoral onde o frio não caustica tanto. Com a manhã que se descobria, os campos desembrulhavam uma espessa camada de geada. Os primeiros raios de sol conferem uma tonalidade brilhante à geada que repousa sobre a relva escondida, como se fosse um manto de cristais de quartzo a reluzir sob a luz solar. Nas aldeias, ao longe, um fio mais escuro sobe desde as chaminés das casas. Sinónimo do frio que invadiu as casas, que levou os habitantes a usar as lareiras onde crepitam os toros de madeira incensados em troca do calor que invade os poros das paredes, trazendo o isolamento do frio.
Nestes dias de frio, tudo parece mais límpido. Do ar, à alvura que cobre os campos, ao próprio céu, que aparece num azul mais nítido, mais resplandecente. Mas as pessoas queixam-se quando a temperatura leva ao bater do dente. Como se queixam quando a invernia aponta a agulha para o outro lado dos rigores – em vez da secura que acompanha as temporadas gélidas, os Invernos húmidos em que a chuva é visita assídua e abundante. Até nisto somos um povo paradoxal, insatisfeito com os elementos naturais com que fomos agraciados: contrariados quando temos chuva em excesso e reclamamos por uns raios de sol, mesmo sabendo que eles são o prenúncio do frio polar; e contristados quando os rigores do frio glacial assentam lugar por dias a fio, clamando por umas gotas de chuva que quebrem a descompostura enregelada que consome por dentro.
Dizem os antigos que o frio conserva. Não sei se nos queriam comparar, humanos, à metodologia do fumeiro. Os adágios que se afirmaram à base da “sabedoria popular” começam a ser esquecidos com o rasgar das folhas do calendário. Agora que o frio nos visita, sem os rigores das temperaturas negativas frequentes no centro da Europa, protestamos. Estamos desconfiados das maleitas que podem vir depois. É só ver como as pessoas andam na rua, fazendo a vontade aos pressurosos avisos de quem de direito: enchumaçadas nos agasalhos avantajados, com o mínimo de pele à mostra, cachecóis, mais gorros, mais luvas, e um ar contrariado que é o compasso do tiritar que o frio transporta para os corpos.
Nem interessa que o sol nos contemple com uns radiosos raios que aquecem a têmpera durante algumas horas diurnas. Os narizes enrubescidos, as mãos que secam e ficam cobertas por um incómodo e inestético verniz de cieiro, a sensação de que o interior do corpo é assaltado por temperaturas que se acercam do ponto de congelação – sinais de que as pessoas não andam confortáveis com o frio que se instalou por uns dias.
Mais uma ilustração dos brandos costumes. Deito-me a imaginar o pânico que não seria se esta gente se mudasse, em colectivo, algures para um local onde a invernia se instala com mais impiedade. Se o alarme é tão audível e os termómetros apenas se aproximam dos zero graus, o que seria se baixassem na escala para um nível siberiano de frio? Entretanto, perdidas na apreensão do desconforto interior, as pessoas passam ao lado da beleza do frio.
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