Um dia destes cruzei o olhar com um qualquer programa de televisão onde passava uma entrevista a uma senhora de 94 anos. Dei comigo a pensar como o avanço para provecta idade faz regressar os idosos à dilecta atenção que costumamos reservar aos bebés.
Não é segredo que na tenra idade a dependência de outrem atinge o auge. Os bebés dependem dos pais em tudo. Além de que a fragilidade suscita o embevecimento. À medida que vão crescendo, a dependência vai-se esbatendo, assim que eles conseguem conquistar, passo a passo, autonomia. Quando o corpo e a mente definham em direcção da morte, e quando as forças se esgotam, as atenções voltam a estar concentradas em quem teve a coragem de ultrapassar a barreira dos noventa. A dependência volta a ser um posto. O carinho com que os velhinhos são tratados quase que os faz regressar ao afecto que receberam muitos anos atrás, quando irromperam do ventre materno e deram os primeiros passos na vida.
Aqui a vida aparece retratada como um círculo. Percorre-se um longo trajecto para, com o ocaso que se avizinha, todo o afecto voltar a ser concentrado nas pessoas que conseguiriam atingir uma idade avançada. Passam a ser tratadas como se fossem crianças indefesas, dependentes de outros para osactos mais banais. Será uma reacção que revela um misto de admiração (a provecta idade a que poucos chegam) e o reconhecimento de que a debilitação da idade merece um porto de abrigo com todo o carinho repousado na pessoa que teve a arte de entrar na idade da admiração.
É um fio que se alonga por anos sem conta, para finalmente a ponta se unir com a origem. O império dos afectos vem à superfície quando os velhinhos são acarinhados como se bebés fossem. Separados por um vasto terreno feito de uma prolongada vida, recém-nascidos e velhinhos comungam do mesmo espírito: motivam uma atenção especial ausente em todos quantos já deixaram a dependência pueril e ainda estão longe dos afortunados que sopram mais de noventa velas no bolo do aniversário.
É o tributo que se presta a uma vida tão longa, que tão poucos mortais conseguem saborear. Quando vejo este tratamento afectuoso vertido nos anciãos, sinto que há uma salutar inveja no acto. Inveja de chegar a essa idade avançada, sobretudo se formos bafejados com o dom do discernimento intelectual e de alguma vitalidade física. Quando se deposita nos velhinhos tanto carinho, projecta-se o que gostaríamos de ter no ocaso da vida – como se os instantes finais fossem o motivo para uma homenagem (que julgamos ser merecida) pela vida que vivemos. Uma espécie de “prémio de vida”. Mais reconfortante do que a estafada mania de homenagear quando a morte tirou a vida. Aí não estamos vivos para presenciar a dor sentida de quem se despede. Nem para percebermos se a dor é pela partida do finado ou se é apenas o estremecimento interior porque a pessoa em falta representava algo para quem se condói.
Descontando os excessos de alguns que exageram na ternura que dedicam aos velhinhos (o tratamento mais próprio de quem está a lidar com débeis mentais…), esta representação da circularidade da vida tem um significado importante. Do nada viemos e ao nada regressamos. Uma elipse que se preenche com o tempo que deixa as suas marcas. Mais acentuadas quando os idosos atingem uma idade respeitável que os eleva ao altar da admiração. As rugas marcadas, os passos entorpecidos, a vista que ofusca, a audição que se dilui, a voz que se esvai – fronteiras que se abrem a um novo fôlego da ternura, à contemplação de uma vida prolongada que merece ser festejada e acarinhada.
É a melhor homenagem que se pode prestar à vida, ao inestimável valor que a vida é. Abstraindo das curvas sinuosas que se atravessam no caminho, dando mais valor ao projecto que tanto tempo durou. A dedicação a uma vida prolongada recupera os afectos que os anciãos buscam no baú das memórias, nas recônditas recordações da tenra idade. Assim como foram recebidos pela luz da vida, dela se despedem, imersos numa reconfortante ternura.
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