24.1.05

O debate Dove sobre “beleza real”: um contributo

Estão espalhados pela cidade outdoors que entram pelos olhos dentro. Trata-se de uma campanha publicitária imaginativa. Mas polémica. Ela estimula a discussão, ainda que seja pelas razões erradas. É uma campanha sobre algo que os publicitários que trabalham para a Dove decidiram apelidar de “beleza real”.

Sucedem-se imagens de três mulheres que, para os padrões convencionais da beleza que vende, não são paradigmas. Uma mulher avantajada, parecida com a Fafá de Belém, exibe a adiposidade que escorre corpo abaixo. Ela traja um vestido sem mangas e espreguiça os braços para cima, expondo a gordura que não se esconde nos seus braços. As linhas do corpo pressentem um peito flácido que descai sobre a linha de cintura. À mostra ficam uns quadris que se esticaram para o lado, mercê das hormonas ingratas ou de um destempero alimentar prolongado. O observador é desafiado a escolher uma de duas opções para caracterizar a senhora: “volumosa? Charmosa?”

Depois aparece uma idosa. A cara enrugada, marcada pela idade, um sorriso mais discreto. As rugas preenchem a face, como se fossem um mapa das vicissitudes da vida, ou o traço de uma vida descuidada que deixou correr o tempo sem evitar a acumulação das peles engelhadas. O desafio aparece com a opção entre “enrugada? Encantadora?” A sequência termina com uma mulher que é o mapa genético típico da mulher britânica – ruiva e sardenta. Uma cara impregnada de sardas, numa pele que, para os padrões habituais da beleza, está nos antípodas do apelativo. A pergunta surge: “cheia de pintas? Cheia de pinta?” A queda do “s” não é desprezível. É a larga diferença entre aceitar que aquela senhora carregada de sardas transporta consigo uma beleza inaudita e atestar que as pintas que lhe pintam a tez são a marca distintiva de alguma fealdade.

Esta história da “beleza real” é coisa de que nunca ouvi falar. Percebe-se a intenção da marca de sabonetes. Elevar a auto-estima das mulheres, de todas as mulheres, para que todas percebam que têm dentro de si algo de belo. Mesmo as que ficaram para trás na distribuição divina de beleza devem-se convencer que a beleza está nos seus próprios olhos, mais do que nos olhares alheios. Será essa a “beleza real”? Real, porque sentida por cada mulher que se fita no espelho em busca da pergunta mítica – espelho meu, espelho meu…Ou a “beleza real” convoca algo de mais profundo, a beleza interior que metamorfoseia pessoas que exteriormente muito devem à beleza em fontes donde ela irradia com uma força ímpar?

Não sou céptico em relação ao poder da beleza interior. Há pessoas bonitas pela riqueza que têm dentro de si. Mas, para que chegue a esta conclusão, tenho que as conhecer bem. De outro modo, resta-me o critério da beleza exterior. É aqui que retomo o contacto com os outdoors da Dove. Não conheço aquelas mulheres de lado algum. Logo, tenho que me ficar pelo critério do embelezamento exterior. Descontando o importante aspecto da subjectividade da beleza – conceito que empenha homens e mulheres em discussões que têm tanto de intermináveis como de estéreis – que ninguém me convença que alguma das “modelos” que posou para a fotografia está sequer nos limiares do mínimo da beleza. Seja ela real ou virtual.

A Dove falhou num aspecto. Vê-se que apostou numa dimensão internacional desta campanha. Há umas semanas vi uma reportagem na televisão que anunciava a aposta da empresa. Estas três mulheres eram apenas a amostra de uma campanha mais vasta – pelo menos no Reino Unido – que usa outros exemplos de beleza discutível que, pelos cânones da “beleza real”, serão indiscutíveis. As fotografias foram feitas no Reino Unido, com mulheres tipicamente britânicas. Seria melhor que dessem uma dimensão nacional, encontrando espécimes que testemunham a “beleza real” nativa.

Por cá podiam encontrar uma varina do mercado do Bolhão. A fotografia não pode retratar a incontinência verbal, nem os primores de educação. Mas pode captar as formas adiposas que se concentram na mulher atarracada – muita gordura por centímetro quadrado. O segundo exemplar seria encontrado no Portugal profundo, algures numa aldeia serrana, perdida onde a civilização tarda em chegar. Retratava a “beleza real” da senhora que se descuida e deixa crescer um buço que rivaliza com as barbichas imberbes de alguns varões. O exemplar final seria uma candidata ao jet-set nacional, já nos seus quarentas avançados, pele sujeita a variados liftingspara tentar restaurar um protótipo de beldade que nunca terá passado dos mais remotos sonhos. A senhora esconde-se atrás de uma máscara de artificialidade, acreditando que os cirurgiões são prestidigitadores que têm a poção mágica que implanta a beleza nunca encontrada. Os cosméticos são a espessa capa que tenta trazer essa beleza perdida para outras caras. Lembro-me, de repente, de Edite Estrela.

Teríamos então uma campanha adaptada à realidade nacional. E o debate sobre a “beleza real”, que a Dove quer promover, seria mais ajustado à “beleza real” que se cruza connosco no quotidiano.

1 comentário:

Anónimo disse...

Cara você é um verdadeiro imbecil! Nunca li tanto machismo e bobagem juntos!