18.1.05

A névoa gentia

A aurora é ainda uma promessa. A luz da noite teima em prolongar-se, nestes dias de invernia em que a penumbra se demora na cidade. A caminho da manhã que tarda, a névoa vai baixando. Goteja, nas suas gotículas quase imperceptíveis. Toma conta da atmosfera, tingindo de escuro a demorada noite, adiando a luz do dia.

A névoa anuncia-se de mansinho. Chega, quase indelével, assenhoreia-se do horizonte. Cobre o céu de um espesso manto que asperge o solo com gotas finas. Ao longe, diria que é um manto que abraça a cidade, asfixiando-a com a humidade que entra nos ossos e deixa uma sensação desagradável. É a névoa que faz a ponte entre a noite que se desprende e a luz da alvorada que vai irrompendo com timidez, furando a barreira de chumbo conquistada pela névoa teimosa.

As gotículas deixadas para trás dançam, desordenadas, ao tombarem no chão. Vagueiam sem sentido, desnorteadas, como se sentissem perdidas ao serem lançadas no solo pela névoa que se abateu. Pousam sobre as árvores, pintam o chão com um molhado escorregadio, adensam a humidade que carcome os ossos corroídos pela idade. É um bilhete-postal da cidade, esta névoa que dá os bons dias à cidade que acorda estremunhada.

Os elementos atraem-se, como se fossem dotados de um mágico íman oferecido pela natureza. Atraída pela água do rio, a névoa debate-se com mais força na zona ribeirinha. Acerca-se das águas do Douro e cinde-se com elas, deixando o tempo passar numa osmose gratificante. O Douro esconde-se na névoa cristalina, faz-se com o tempo que transcorre uma umbilical massa só feita da água do rio onde pousa o gotejar agigantado da névoa. Ela vem repousar no rio, fazendo dele o seu leito onde se demora por umas horas. Até que o sol a vença, diluindo-a nas águas doces que são o seu leito final.

O Porto é uma cidade estranhamente cinzenta. Não que o breu cinzelado traga fealdade à cidade. É lugar-comum sentenciar que a escuridão traga os vestígios de beleza que restam inertes numa paisagem. Por aqui a excepção atinge o expoente máximo com a beleza que fala em uníssono com o cinzento que domina a paisagem. O cinzento das pedras gastas, da granítica cidade que se ergueu a pulso num terreno acidentado; o cinzento dos nevoeiros que presenteiam uma luz mágica a uma cidade que desperta de um sono altivo.

Uma acalmia estranha vem com a névoa. O vento suspende-se, como se fosse possível pará-lo no ar, torná-lo inerte enquanto a névoa é senhora do tempo. Muitos acham que a névoa pinta um quadro de tristeza, com a penumbra doentia que persiste. É causa de indisposição matinal para quem apenas se alegra com as cores radiosas do sol nascente. Parecem ignorar a magia que se esconde nas sombras trazidas pela névoa, no estertor que se afivela enquanto a névoa se demora sobre a cidade. Errantes, os que prestam vassalagem aos tons escuros da névoa olham para além das cores brilhantes que alegram as almas cansadas do agasalho invernal.

Os outros, sem fadiga da invernia, acostumam-se aos elementos, aprendem a conviver com eles, penhoram a beleza timbrada com a mistura de tons escurecidos com que a cidade se tinge. A névoa é um ingrediente essencial desta paisagem que se mistifica. Já o disse atrás: esta névoa que adensa um manto feito de penumbras desvela um ambiente mágico feito das sombras que se deitam sobre a cidade.

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