Hoje sinto a necessidade de espingardar. De destilar um pouco do fel que me corrói quando chega esta altura do ano, em que a correcção dos exames me consome a paciência e me traz mais alguns cabelos brancos. Começo por um e-mail que enviei aos alunos de uma das disciplinas, após a correcção dos exames:
“É vergonhoso que me tenham apresentado estes resultados. Vergonhoso, porque vocês sabiam o teor da frequência. Só a falta de estudo – e o laxismo de quem acha que a disciplina está feita à partida – pode justificar este comportamento lamentável. A minha compreensão merecia da vossa parte um esforço mínimo para apresentarem resultados decentes. Confesso que estou arrependido por ter facilitado a vossa vida nesta disciplina. É o preço que pago por ter tentado ajudar. Não se mostraram merecedores desta ajuda, porque nem sequer vocês (os verdadeiros interessados) tentaram o mais pequeno esforço para corresponder à minha ajuda.
Pondero seriamente mudar o sistema para o exame final: sem fornecer pistas sobre a matéria que vai sair, obrigando-vos a estudar tudo de uma ponta a outra. Num sistema universitário com um mínimo de exigência, e com alunos à altura, isto nem seria estranho...”
Convém explicar o contexto em que esta mensagem aparece. Trata-se de uma disciplina de um curso que já não funciona. A licenciatura (Relações Internacionais) tem vindo a ser descontinuada nos últimos anos lectivos, por falta de alunos. Este ano apenas funcionam algumas disciplinas, de forma avulsa. As disciplinas que os “veteranos” têm em atraso. As poucas disciplinas que lhes faltam para concluírem o plano curricular. Nesta cadeira ainda tenho quase uma dúzia de alunos inscritos. Devido à excepcionalidade da situação, adoptei um critério de flexibilidade. Para ver se estes “veteranos” (alguns deles já estariam no seu 9º ou 10º ano, quando o plano curricular comporta quatro…) se vêm livres da disciplina – e se eu me vejo livre deles...
Combinei com eles que os exames deste ano seriam iguais – exactamente iguais – aos do ano passado. Confesso que esta solução me trouxe alguns amargos de consciência. Sempre evitei soluções de facilitismo, porque acredito que elas se voltam contra os alunos. Uma cultura de facilitismo afasta-os dos padrões de exigência que alguns podem encontrar lá fora, no mundo profissional. Depois saem da universidade impreparados. E culpam a universidade e os professores, aqueles professores que os deixaram imersos num mar de inconsequentes facilidades.
Apesar das hesitações que tive antes de tomar esta decisão, avancei para ela. Teria que fazer algo para que eu e estes “veteranos” nos víssemos livres uns dos outros. Para minha sanidade mental, esta seria a solução de último recurso. Mesmo pagando o preço da incoerência, por ir contra os padrões de exigência de que nunca prescindi. O resultado foi impensável. Talvez por estarem conscientes de que não teriam que estudar nem uma décima parte do que seria necessário em condições normais, estes espécimes da mediocridade nacional adormeceram no ponto. Aposto que estudaram no dia anterior. Deram apenas uma vista de olhos pela matéria. Pensavam que eram favas contadas. Até por terem percebido que o professor estava a facilitar para os livrar do peso da disciplina.
Os resultados deste exame são uma amostra de como as facilidades são contraproducentes. Quando sabemos que tudo é fácil, o esforço é menor. O laxismo vence e abdicamos de um mínimo de exigência. O que irrompe é a falta de qualidade. O disparate surge em catadupa, com respostas impensáveis – sobretudo para quem tinha todas as condições para tirar boas notas, assim houvesse um mínimo de vontade e de brio.
Ao fim de doze anos nestas lides, é o cansaço que me verga em momentos como este. Chego a pensar se não ando a pregar no deserto, quando deparo com os resultados decepcionantes e com respostas que revelam a queda para o absurdo. Já nem sequer ligo aos erros ortográficos e de sintaxe que abundam como cogumelos bravios (dois exemplos que vêm de outra turma, cujos exames corrigi no início da semana: “enexistência” e “elações” – esta última escrita por mais de dez alunos…). É a paciência que se começa a esgotar perante a inépcia, o desinteresse, a apatia.
E concluo, em reflexão interior pelo acontecimento: estes alunos que há anos consecutivos me aparecem pela frente (como se gostassem tanto da cadeira que a vão tentar fazer ano após ano…) seriam as últimas pessoas que recomendava para um emprego. Qualquer que ele fosse.
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