Não é a primeira vez que me refiro a João César das Neves. O conceituado economista (chegou a ser o principal conselheiro económico de Cavaco Silva, quando este foi primeiro-ministro) tem-se destacado pelas crónicas beatas que publica às segundas-feiras no Diário de Notícias. Recordo-me de ter zurzido de César das Neves a propósito de uma dessas crónicas, onde ele imaginava que a mulher recuperou um papel quase casto que vem das leituras bíblicas.
Hoje apetece-me fazer um acto de contrição. Não que tenha voltado atrás no meu ateísmo metódico. Pus-me a pensar como deve ser difícil fazer o papel de pregador no deserto, como César das Neves desempenha ao disseminar a fé nos escritos em que uma candura militante vem ao de cima. Será difícil, porque César das Neves tem que remar contra ventos e marés. Tem que enfrentar toda a fúria e intolerância dos que desdenham da fé católica. Mas, ao mesmo tempo, invejo-o porque se sente, dos seus escritos impregnados de uma fé inabalável, que César das Neves é uma pessoa imensamente feliz na fé que o domina.
Como já o disse por mais do que uma vez, sou ateu convicto. O que não é cómodo em certas circunstâncias (lidar com a morte, por exemplo). Tento, contudo, manter ao alto um respeito pelas pessoas que vivem imbuídas de fé – qualquer que seja a religião. Ora como por cá a intimidade entre a religião católica e a história do país andam de braço dado, o catolicismo é o saco de boxe dos que, ateus ou agnósticos, não se coíbem de mostrar toda a sua intolerância em direcção dos que professam a religião católica. É uma manifestação execrável de intolerância, só equiparável aos descaminhos que vêm do historial da igreja, com a abjecta inquisição. Confesso que me causa mais espécie um ateu que destila todo o seu ódio em relação a um católico do que este, na exibição da sua candura dogmática. Mesmo estando mais próximo daquele do que deste.
É nestas condições que vejo em César das Neves um corajoso que está sempre na linha da frente na exuberância das suas ideias. Sem medo de dar o peito nas trincheiras que o opõem aos fanáticos ateístas, César das Neves prossegue a sua senda de divulgar a palavra divina, entrecortando algumas das crónicas com as indispensáveis passagens bíblicas que dão sustentação às suas teses. Para um ateu, as suas crónicas religiosas são repletas de uma ingenuidade que roça o impensável. De repente vem à recordação algo que escrevi quando manifestei a minha discordância com um escrito de César das Neves: perguntei-me então se César das Neves vive no mesmo mundo do comum dos mortais. A verdade é que algumas das suas parábolas exteriorizam um mundo ideal, o mundo que César das Neves gostaria que existisse. Nem vou discutir se esse mundo seria melhor do que o desgraçado mundo onde vivemos. A distância entre o que é desejável e o que é possível é o abismo inultrapassável que faz das prédicas de César das Neves um exercício da impossibilidade do ideal.
César das Neves é o palhaço de serviço para muitos intolerantes que pululam por aí. É fácil discordar do que ele escreve, quando associa a religiosidade aos aspectos mundanos da vida. Por mais fácil que a discordância venha ao de cima, evitar os exageros da crítica seria a receita adequada para não resvalar para excessos que desnudam uma intolerância fatal. Uma intolerância que faz perder a razão a quem critica. E que, por reflexo, enche de razão o criticado.
Não sei se a lhaneza típica de César das Neves é uma estratégia propositada para se expor aos críticos e acabar por levar a palma da razão, por derrota técnica dos adversários, motivada pela intolerância que expiam. Suspeito que é disto que se trata. Basta ler o artigo de César das Neves, ontem publicado no Diário de Notícias, onde dá réplica a uma virulenta crítica de Vasco Pulido Valente. Lê-se o artigo de uma ponta à outra, e vê-se que a atitude é a habitual dos católicos que não esquecem os mandamentos bíblicos: quando se é esbofeteado pelo adversário, há que dar a outra face. César das Neves fê-lo, ainda que pontue a sua resposta com uma indisfarçável superioridade moral escondida no cinismo.
Sei que no passado não fui meigo para com César das Neves. Através deste texto apresso-me a bater no peito – para usar mais uma metáfora do catolicismo. Por maior que seja a discordância sempre que João César das Neves atravessa a pena a dissertar sobre metafísica, a sua coragem é louvável. Ele sabe que a sua fé é motivo de chacota entre as facções do politicamente correcto. E mesmo assim não abdica das suas convicções um milímetro que seja, mesmo sabendo que se expõe à ridicularização dos intoleráveis que não conseguem respeitar as ideias que são diferentes das suas. É um cruzado da era moderna, um corajoso ímpar.
1 comentário:
Eu não tenho dúvidas que esse Senhor é palhaço, e sou uma pessoa bastante tolerante.
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