Ontem dei conta que uma das idiossincrasias nacionais afinal faz parte do código genético humano. Não é predicado português, é universal: a mania de deixar tudo para a última da hora. Descobri-o a propósito da febre das transferências de jogadores que ontem atingiu o apogeu, no último dia regulamentado para refazer planteis. Se o futebol já tem uma importância desproporcionada e consome tempo demais na imprensa, com o último dia para as contratações atingiu o expoente máximo.
Quando se fala em futebol, o “grande Benfica” (vox populi, não a minha…) tem que vir à baila. É inevitável. Ontem foi-o por duas pequenas razões – em bom rigor, por dois artistas da bola de pequenas dimensões. Um entrou, o outro esteve para sair, mas como capitão e “benfiquista desde a tenra idade”, o amor à camisola falou mais alto. Querem que nos acreditemos neste conto de fadas, num tempo em que os artistas da bola são mercenários do cifrão, e logo com um praticante que é conhecido pela sua duvidosa formação humana.
O outro praticante que entrou nas fileiras “encarnadas” veio de Itália. (Nunca percebi porque insistem em dizer que aquela agremiação veste de encarnado; serão ainda preconceitos herdados do Estado Novo, quando o “vermelho” tinha a conotação diabólica que se conhece?) Responde pelo nome de Miccoli. A sua biografia oficial destaca duas características: a envergadura física, fazendo com que o praticante se devesse chamar Piccoli em vez de Miccoli; e uma tatuagem de Che Guevara que ele ostenta, supõe-se com orgulho, um pouco acima de um dos tornozelos.
Se o Benfica é o maior clube – do país e, na ilusão do seu presidente, até do mundo (pudera: a quarta classe não o deixa alcançar maior discernimento…) – o Benfica é o clube do povo. Agora que o artista italiano pretensamente fã confesso do grande revolucionário latino-americano chegou ao mercado nacional da bola, junta-se a fome com a vontade de comer. É só seguir este raciocínio: o Benfica, o maior clube do mundo e arredores, é o clube das massas, o clube popular por ser o mais popular. Che Guevara foi, de acordo com as hagiografias oficiais, um defensor acérrimo do povo oprimido pelo grande capital, pelas ditaduras sangrentas que espezinharam os seus direitos. Che Guevara seria adepto do Benfica, fosse vivo e tivesse nascido em Portugal. Porque o povo é do Benfica, o revolucionário barbudo não se podia demitir das expectativas da populaça.
A comunicação social, sedenta do romantismo que envolve Che Guevara, parece mais entusiasmada com a tatuagem do pequeno jogador importado de Itália, não tanto pelos seus dotes de praticante. É um velho estigma que persegue certos sectores carentes de heróis. Sobretudo se a biografia fabricada contar ao mundo que esse herói lutou por “causas nobres” e foi morto em condições indignas, pelos sempre ignóbeis inimigos dos direitos do povo. Os mesmos que são intolerantes em relação aos que manifestam a crença num deus qualquer; afinal a sua existência depende de um sucedâneo divino de carne humana. Uma divinização diferente, mas ainda uma divinização, a entrega de um destino na fábula de um herói que o é ainda mais porque já está morto.
No meio deste regabofe à volta da tatuagem da mais recente contratação do Benfica, ainda ninguém se preocupou em saber se o tal Miccoli acaso sabe quem foi Che Guevara. Não me admiro que revele desconhecimento, ou que esteja encadeado pelas romantizadas historietas que dele fizeram um deus com pés de barro. Pois são tantos os jovens inconsequentes que acham que é “fashion” envergar t-shirts com a estilizada face do sanguinário revolucionário, ainda que ignorem as atrocidades cometidas em nome da causa popular de que ele e sus muchachos se consideravam defensores.
Agora que o Benfica é ainda mais um clube popular – porque tem um jogador com uma tatuagem de Che Guevara – mais prazer me darão as suas derrotas.
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