6.9.05

O homem providencial



Num cantinho onde finda a Europa, congeminaram-se perfis com gabarito para o cargo mais relevante, o primeiro entre todos os demais. Vaidades pessoais, desígnios escrevinhados por arquitectos do devir nacional, embates esboçados que fazer correr tinta antes do tempo. De um lado da barricada, um D. Sebastião que vai recusando a sinecura que, dizem estudos de opinião, lhe seria servida em bandeja de ouro, numa vitória cravejada com facilidade. Do outro lado, alguma desorientação. Personalidades “gradas” hesitam, para enfim recusarem a batalha. Não queriam dar a cara por uma derrota previsível. Perante o deserto ameaçador, lá surgiu o velho patriarca, emergindo de um nevoeiro cerrado, avançando para o pleito, com a coragem que faltou aos camaradas mais novos.

E quando se pensava que o homem estava no remanso da sua reforma dourada, ainda teve força para mais um combate – decerto o último. Daquele sector jorrou uma exultação contida. O entusiasmo não é comparável à vaga de fundo que o acompanhou em tempos idos. Soa a falsete. Nem entre os militantes há um apoio unânime. A sua entrada em cena é um acto desesperado, apenas com o fito de impedir que a sebastiânica figura do quadrante rival ocupe o cargo. Para esta gente, o cargo é coutada dos seus. Heresia maior, se viesse a ser detido por alguém que vem de outras paragens. Estranha forma de sentir a democracia. Por detrás da tolerância eleitoral, uma (mal) escondida capa de intolerância anda à solta.

O patriarca, ressuscitado para o derradeiro combate, já se mostrou no seu pior. Espezinhando quem aparecer pela frente como estorvo. O candidato já orou, regurgitando a sua sapiência que não pode merecer a mínima contestação. Não é coisa de agora. É alguém que foi investido de uma sapiência divina, acima de qualquer suspeita. Quantas vezes o disparate se soltou daquela boca, sem que alguém ousasse denunciar a asneira? Agora surge como o salvador. Promete que será um osso duro de roer, um degrau difícil que o adversário que ainda o não é terá que escalar. Será o rival mais difícil de vencer, logo garantia que a sinecura não vai ser oferecida de bandeja ao algarvio que surgir da bruma.

O patriarca também tem a sua faceta sebastiânica. É uma figura sebastiânica contra o sebastianismo pedante que ameaça levar o cargo para o outro lado da barricada. Convém-lhe a máscara providencial. Para arregimentar fiéis e outros não tão entusiasmados, mas que se amedrontam com a possibilidade do adversário vencer a contenda.

Vai ser uma eleição enfadonha. Há a excitação dos comentadores, que nem dormem só de pensar na iguaria de excelência que será o combate entre dois dos maiores protagonistas do passado. Mas é esse o problema: figuras do passado. E se hoje nos auto-punimos pelo atraso em que continuamos mergulhados, o atraso em muito se deve a que não teve a capacidade para, no passado, de lá nos retirar. Uma eleição sem esperança: pela irrelevância da sinecura; pelo regresso aos pecadilhos do passado. Um desesperançado devir, estivesse o porvir do país nas mãos desta eleição.

Uma eleição pela negativa. De um lado e do outro, eleitores vão votar como arma de arremesso que impeça alguém de vencer o combate. Não há-de ser um voto de primeira escolha, antes um voto negativo, um voto contra o outro de quem não se gosta. No rescaldo, o vencedor há-de surgir como “o presidente de todos os portugueses”. Na doce ilusão de que o é, acreditando estar sancionado pelo voto de uma maioria que é, contudo, uma minoria no universo dos que têm direito a voto.

Dizia o outro – o renegado – que não há homens providenciais. Tem razão. Há os que insistem em olhar para o lado e fazer de conta que não. E toda uma turba, a quem a força das conveniências faz alinhar pelo mesmo diapasão, reescreve uma história que ilude o mais ingénuo dos votantes. Vende-se-lhe a ideia de que há mesmo homens providenciais, cercados por uma aura sobre-humana que resolve problemas cuja resolução não está ao alcance do comum dos mortais.

É aqui que a retórica entra com os seus truques: o homem providencial já sentenciou que a sua candidatura tem o objectivo de unir todos os portugueses. Todos os portugueses. Quererá isto dizer que “todos os portugueses” têm que votar no senador vitalício? Dispensem-se as eleições, pois. A vitória está-lhe prometida, na ridícula pretensão de achar que a providencial máscara é um culto a que nenhum cidadão pode escapar. Os desalinhados, essas escassas ovelhas ranhosas, não contam. Há que as votar ao degredo intelectual, elas que impedem o unanimismo fácil e a entronização real de um republicano com tiques monárquicos.

Não fosse adversário do voto negativo, não tivesse um odiozinho de estimação pelo oponente do homem providencial, e pensava duas vezes em votar no seu adversário, só para ter o prazer supremo de contribuir para a derrota do patriarca. A recusa do voto negativo fará de mim – sem surpresa – outra vez abstencionista.

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