Todos os anos, no primeiro fim-de-semana de Setembro, um oásis para antropólogos, etnólogos e biólogos especializados em espécies em extinção. Reúnem-se para os lados do Seixal, onde montam acampamento. Lá encontram um campo de observação de eleição. Passeiam-se, esfuziantes, camaradas de diferentes idades. Uns, de meia-idade e mais idosos, crentes no ideal comunista, vivendo desfasados do tempo, como se a queda do muro de Berlim não tivesse acontecido. Outros, mais jovens, num frémito utópico, na ignorância da história recente.
Mascara-se o evento com uma roupagem “cultural”. Alguns, incautos, dão com os costados na quinta comunista. Dizem que vão lá apenas pela excelência do cartaz cultural. Estão no seu direito. Mas pagam um preço: apanhar com a retórica estafada dos artistas que desfilam no palco, entrecortando as performances musicais com palavras de ordem que acompanham o punho erguido. Pelo meio, esses incautos contribuem para as estatísticas oficiais e distorcidas do partido comunista: cada visitante da festa, um aderente à causa comunista. Mesmo que não depositem o voto no partido da foice e do martelo, acabam por engrossar a estatística que convém ao partido. Balões de oxigénio revigorantes, em tempos de vacas magras e de militância que se exaure com o avançar da idade dos devotos militantes.
Esta foi a primeira festa órfã do grande timoneiro Cunhal. Outra referência – Vasco Gonçalves – feneceu há poucos meses. Adivinhava-se um forte tom nostálgico, com a invocação dos mortos que foram âncora dos militantes comunistas durante tanto tempo (mais Cunhal, pois o camarada Vasco foi um fenómeno episódico). O partido descobriu quadros inéditos de Cunhal, exibidos para cimentar a fidelidade canina que os norteia. O momento alto estava guardado para o último dia. A gravação de uma mensagem do camarada Cunhal, já de voz consumida pela doença que o haveria de levar do mundo dos vivos. Um discurso que não passou das habituais recorrências, dos chavões estafados que levam os camaradas a exultar uma vez mais. Com a novidade das palavras saírem pelas colunas sem a presença corporal do grande timoneiro.
As lágrimas escorreram de muitos militantes que não conseguiram reprimir a emoção. Até de jovenzinhos que vivem cegados pela ilusão de uma história que o não foi, possuídos por um dogmatismo empedernido. Nesse instante descobri que os camaradas, tão críticos de qualquer religiosidade, afinal deixam-se guiar por um teísmo personificado no líder que se ausentou na sua sepultura. Bem vistas as coisas, não há grande diferença – entre as religiões que são denunciadas pelo dogmatismo comunista e esta maneira de cultivar ídolos com pés de barro que se transformam em divindades quando deixam o reino dos vivos. Com um biombo que esconde a deificação: a retórica do colectivo, da causa dos trabalhadores oprimidos pelos arautos do grande capital.
Um séquito de dedicados militantes, numa média de idade que faz da casa comunista um asilo de terceira idade, exibe a crença que se assemelha à fé das religiões ou à mais comezinha crença em mezinhas pagãs. Nem de propósito, no mesmo fim-de-semana, em Vilar de Perdizes, no recôndito Trás-os-Montes, mais um congresso de medicina popular. É aí que se encontram curiosos, endireitas, bruxos e outras espécies do género. Convencionou-se chamar a isto "medicina popular", num estranho albergue espanhol onde tudo cabe. Para gáudio de uma turba desenganada da "medicina convencional", que procura a esperança final em mezinhas de curandeiros e afins.
Uma ponte une comunistas e apaniguados da “medicina alternativa”: a ilusão é um esteio a que se agarram no desencanto do mundo em que vivem. Na doce miragem de uma utopia, acredita-se numa versão salvífica do mundo que apela a divindades obscuras, com métodos que toldam o bom senso e buscam no interior do ser o que de mais sombrio existe. Comunistas e crentes do caldeirão indiferenciado da “medicina alternativa”, irmanados numa crença que, como crença, não se distingue das fés religiosas mais tradicionais.
1 comentário:
Passe pela Festa do Avante no próximo ano, aperceba-se ao vivo das duas várias vertentes: gastronómica, cultural, lúdica e assista à política , já não lhe digo que participe...
Um ano depois, voltemos ao seu "blog" e certamente mudou de opinião. Não sou militante do PCP, no entanto, fui lá 3 vezes. Não aprovei tudo o que vi, mas senti-me bem por ter lá ido.
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