Não há adjectivos para os animais (sem ofensa para os ditos) que saqueiam New Orleans depois do cataclismo que devastou a cidade. Não bastava a passagem do furacão, com efeitos destruidores de que não há memória. Nem a perda de vidas – milhares, ao que suspeita. Nem sequer a destruição de lares, deixando inúmeras pessoas sem tecto, no desespero de quem tudo perdeu no sopro assassino dos ventos ciclónicos. Com a desgraça à mostra, os abutres da miséria alheia marcaram encontro para rapinar os despojos que estão à mão, por entre os destroços da cidade levada pelo furacão.
A façanha destes oportunistas sem escrúpulos merecerá análises detalhadas dos estudiosos do comportamento humano. Dará páginas abundantes que reforçam a cartilha dos comportamentos desviantes. Suspeito que alguns, mais condescendentes, encontram justificações para estes comportamentos. Dirão que os saqueadores são pessoas pobres, os excluídos, os eternamente marginalizados. E que agora se vingam, numa necrófaga aliança com a destruidora força da natureza que vergou uma região.
De que servem essas análises sofisticadas? Têm o condão de inverter os termos da questão: vitimam os autores das pilhagens, convocando a compreensão alheia. E punem os que sofreram perdas de vidas de entes queridos e amigos, os que ficaram sem casa e que vêm os seu haveres roubados. Teses que apelam ao benefício de quem andou nas agruras da vida, no limiar da sobrevivência. Pretexto para passar por cima do inalienável direito de propriedade, que deve ser respeitado por cima dessas ideias que legitimam a desresponsabilização dos delinquentes. Teses sem objectividade, absurdas.
Se calhar, os abutres que andam por New Orleans e outras zonas devastadas nem se encaixam no protótipo dos excluídos. Esses, tal como muitos habitantes, tentaram fugir do cataclismo. E se não conseguiram, acolheram-se em abrigos para escaparem da intempérie assassina. À solta pelas ruas, os profissionais do crime duro, mostrando como a utopia da vida em comunidade é isso mesmo, uma utopia sem destino porque um punhado de ovelhas tresmalhadas derruba os alicerces da confiança que sustentam a vida em sociedade. Ao mesmo tempo, a exibição da perfídia que sinaliza a natureza humana. Ocasião para corroborar o pessimismo histórico que traça o percurso humano, ainda que se diga que estes são comportamentos de excepção. Decerto. Mas os suficientes para dar razão o adágio que diz que num cesto de maçãs sãs, uma podre basta para contagiar as demais.
Estes ascetas do mal vivem cercados pela desonestidade intelectual. Se não fossem marcados por este estigma, o oportunismo deplorável de fazerem fortuna com a desgraça alheia seria reprimido. É aqui que se tece a ponte com a desonestidade intelectual dos entusiasmados apoiantes da geriátrica candidatura presidencial de Soares. Quando analisam a desistência do poeta Alegre e esmiúçam o seu condoído discurso, acusam o abortado candidato de despeito.
Não tenho procuração do poeta, nem tão pouco simpatia pessoal por ele. Ter sido ou não candidato, em vez do patriarca socialista ou como seu concorrente, é-me indiferente. Tão indiferente como a anunciada candidatura do homem de Boliqueime, tão messiânica como a de Soares. Por cima das corriqueiras análises que entretêm comentadores políticos, mais importantes os sentimentos que se ligam a valores que enchem a vida de significado. Se houvesse dúvidas que a política se furta ao código de conduta desses valores, a rasteira que o velho Soares pregou ao seu “amigo” poeta fica para os anais. Que o poeta tenha mostrado “despeito” com as palavras desagradáveis que reservou ao seu “amigo” só é surpresa para os que se deixam cegar pelo brilho opaco desta candidatura de recurso que vai buscar aos fundilhos do mais deplorável do regime o seu protagonista mor.
Só muita desonestidade intelectual explica a crítica áspera a Manuel Alegre. Os que dão o peito às balas em nome do patriarca que quer um terceiro mandato em Belém são aqueles que, fossem feridos pela traição de um amigo de longa data, decerto não ficariam calados. Então porque se indignam?
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