15.9.05

O omnipresente da fortuna

Está na moda: os bancos recorrem a figuras públicas, são o isco que atrai mais clientes. Há semanas foi o BPI que apresentou o homem que mais próximo está da condição divina, aquele que não se cansa de se auto-elogiar como o melhor treinador de futebol do mundo. Esse, que vai ter a honraria de ver uma réplica de cera numa sala do famoso museu londrino que imortaliza celebridades, vivas ou mortas.

Agora é o banco Millennium que se socorre de um cantor místico, vestes brancas, pose misteriosa que se esconde nos óculos escuros de generosas dimensões. O sucedâneo de cantor não se cansa de apregoar: “estou aqui, estou aqui, estou aqui”. No spot as imagens sucedem-se com figuras anónimas, nas mais variadas situações da vida, enquanto da voz cavernosa do cantor se solta o “estou aqui”. Uma parceria bem estudada: o banco, pela voz do cantor, informa-nos da sua omnipresença. Só os incautos se surpreendem com o fenómeno. Consta que este é o banco da Opus Dei. Assim se percebe a encomenda da cantoria que, de forma monocórdica e cansativa, diz que o banco está por todo o lado, “no meio de nós”, como a sua figura tutelar.

Curiosa é a presença de Abrunhosa como testa de ferro desta omnipresença. É a mesma individualidade que se destaca por intervenções públicas, fora da esfera de acção “artística”, que estão nos antípodas do que representa o banco da Opus Dei. Não se sabe do registo religioso do artista. Não consta que seja devoto do catolicismo fervoroso, que frequente templos e sacristias. Ao escutar as palavras que acompanham as suas músicas, há um suave traço de libertinagem que não se encaixa no catecismo católico. Mesmo as intervenções públicas com conotações políticas desnudam preferências bem distantes das opções políticas do estereótipo representado pela imagem do banco.

Parece uma escolha contra-natura. Falta saber quem foi mais cínico – se o banco, se o cantor. Pode ter sido o banco: soube atrair o cantor a dar a cara e a pseudo-voz, com a choruda recompensa que engrossou a sua conta bancária. Terá sido o banco, se vingar a tese de chamar a si mais clientes que outrora eram ovelhas tresmalhadas, cientes de que este é o banco dos católicos mais empedernidos. Atraídos pela chancela do cantor que é um dos seus ícones contemporâneos, esta imensa mole humana passará a depositar as suas poupanças à guarda do banco da Opus Dei. Objectivo cumprido.

O cinismo pode ter partido de Abrunhosa. Sem se importar com as acusações de incoerência – porque as suas aparições públicas filiam-no em causas que estão longe da retórica católica – o artista embolsa uma maquia invejável paga por quem nele não se revê. O adversário paga-lhe, mesmo sabendo das divergências. É um triunfo com um travo adocicado. Naõ interessa a curvatura pronunciada na espinha dorsal do artista e do banco que o contratou? Nem tão pouco que a flexibilidade da espinha dorsal dos fãs do artista é do mesmo calibre, se mais tarde se observar que a campanha se saldou por um êxito considerável.

De quando em vez, a vida depara-se com surpresas deste teor. É das coisas mais belas que o incerto futuro traz. Quando estamos imersos num aborrecida modorra, despertamos para um acontecimento surpreendente que traz o sal e a pimenta, condimentos que são a alavanca da vida. Há as surpresas agradáveis, as surpresas desagradáveis, as surpresas que nos deixam atónitos. Esta campanha publicitária encaixa-se no último perfil. Por ela pude concluir que Abrunhosa anda de mão dada com os fundamentalistas do catolicismo, numa parceria que anuncia a sua cumplicidade por uma omnipresença prenhe de fortuna. É o banco que está no meio de nós, dando o suporte financeiro aos sonhos que têm um preço elevado. A divinização do banco tem o sacerdote supremo, o cantor que dá a cara. Ele há coisas do diabo: e mesmo as figuras mais demoníacas, que professam modos de vida nada consentâneos com o beatismo militante do ultra-conservadorismo católico, acabam por se converter em testas de ferro da retórica evangélica.

Do passado emergem histórias de artistas que andaram por “caminhos ínvios” e que, entretanto, se converteram às “delícias da religião” (Nick Cave, e antes um Cat Stevens que até mudou de nome, em nome do Islão). Abrunhosa, amigo do Bloco de Esquerda, corporiza a imagem do tele-evangelista do grande líder desta agremiação partidária. Terá Abrunhosa encontrado a sua redenção?

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