As formiguinhas sabem que viver em comunidade afasta papões que, vivessem elas mergulhadas no seu umbigo, iriam ceifar as suas vidas com a facilidade que a sua pequenez individual permite. A sua sobrevivência depende da organização em sociedade. Sabem que têm que pôr em comum os seus interesses, renegar eventuais tentações egocêntricas. Se resvalarem para o egocêntrico, pode ser a atracção pelo abismo de onde jamais conseguirão sair – o fim da linha espera as ovelhas tresmalhadas, sem hipótese de retorno.
Chama-se a isto uma organização em sociedade, que aparece com o manto institucional do milagre contemporâneo que dá pelo nome de Estado. Há os dissidentes da mais variada espécie – os anarquistas convencionais, os anarquistas menos convencionais (os anarco-capitalistas), e até são metidos neste saco os cultores dessa coisa hedionda que é o “neo-liberalismo”. Para os que prezam as virtudes da organização social que se acoberta nas vestes protectoras do Estado, qualquer solução que encolha o tamanho do Estado – e deixe o mercado funcionar em maior medida – é coisa má.
Estes arautos do Estado estão por aí, em todo o lado. Uns, mais sossegados, banqueteiam-se nos lautos manjares que o Estado lhes oferece – as sinecuras, as negociatas, os tráficos de influências. Outros, ideologicamente mais puros, atiram-se com fúria à expansiva globalização, aos excessos de “neo-liberalismo” que emagrecem o Estado que protege os mais fracos das diatribes dos mais fortes. Os puros do estatismo pulam da toca quando acham que um cataclismo teve consequências drásticas porque temos Estado a menos e mercado a mais. Voltou a acontecer a propósito da catástrofe que atingiu o Louisiana e o Mississipi, depois da passagem do furacão Katrina. Um representante da moralidade evangélica do Bloco de Esquerda que escreve aos sábados no Expresso foi o expoente máximo de como se pode confundir a árvore com a floresta:
“Ou pagámos, antes, a saúde uns dos outros, a velhice de todos, o futuro dos mais pobres, ou sobra só o instinto de sobrevivência. A este instinto chamamos, hoje, leis de mercado. Só que o mercado, quando nos apanha moribundos, faz o que sabe fazer: devora-nos vivos. E cobra pelo repasto.”
Descontando o mau gosto de fazer vingar credos ideológicos à custa da desgraça alheia, Daniel Oliveira revela o mais puro preconceito anti-mercado. É a velha retórica dos antagonistas do capitalismo, que não se cansam de apregoar que todos os males do mundo – e são tantos – têm um denominador comum, o capitalismo desregrado. É como se o capitalismo fosse um abutre, que suga o sangue dos desprotegidos para engrandecer mais ainda os poderosos que vivem no fausto. Como diz Oliveira, o mercado é perverso porque ataca sobretudo quando os fracos estão expostos. Só não se deu ao trabalho de explicar como é que o mercado “cobra pelo repasto”, nem qual o valor da factura.
Por estas bandas é tanto o ódio ao mercado, ao capitalismo, à globalização, que aparecem como defensores do Estado – mesmo de um Estado que se veste com roupagens diferentes dos dogmas por onde eles transitam. Do preconceito não se livram. Continuam a olhar para o mercado, que se supõe ser sinónimo de iniciativa privada, como o inimigo do “povo”. Esquecendo que entre “o povo” há milhares, milhões de pequenos empreendedores que também emprestam o brilho à iniciativa privada que enche o alfobre do nefando capitalismo. Destilam o ódio contra o “grande capital”, as multinacionais que se espalham pelos quatro cantos do mundo e que insistem em oprimir os trabalhadores, em levar os consumidores pelo império da alienação.
Lessem o que não lhes convém, e saberiam que o mercado não é isso. Saberiam que o mercado é o expoente máximo da organização social sem o espartilho das orientações de iluminados que querem impor-se aos demais. O mercado é a organização espontânea, não a organização forçada do Estado que emerge na ilusão dos milagres que consegue operar.
Quem não tiver os seus preconceitos que atire a primeira pedra. Não me repugna revelar alguns dos meus. Um: desconfiar do Estado paternalista que tem sempre a solução milagrosa quando nenhuma solução parece eficaz. Então abrem-se alas ao Estado que, com um toque de Midas, resolve tudo e mais alguma coisa. Pena que, tantas vezes, as coisas fiquem ainda piores depois do Estado intervir. Seria bom que os anacletos e companhia também reconhecessem o seu preconceito anti-mercado que os leva a defender o que, no “purismo” dos seus dogmas, é uma incongruência: o Estado social.
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